Almas Gêmeas

[rating:4.5]

A produção neozelandesa “Almas Gêmeas” (Heavenly Creatures, 1994) é o terceiro título assinado por Peter Jackson. Conhecido dos fanáticos por filmes de terror ultraviolento com toques cômicos, o diretor apresentava, então, um trabalho completamente diferente, que utilizava elementos de fantasia e efeitos especiais de ponta para contar uma história assustadora de amizade e preconceito. “Almas Gêmeas” é uma demonstração inequívoca do talento do homem que conceberia a trilogia “O Senhor dos Anéis”, e possui a vantagem de ser um filme mais delicado e ambicioso do que a trilogia mágica que Jackson faria depois.

O enredo de “Almas Gêmeas” é baseado em uma história real ocorrida na Nova Zelândia, em 1954. Foi um dos casos mais rumoroso do país por anos a fio. A história trata da amizade de duas garotas, que descambou para a obsessão e terminou com o assassinato da mãe de uma delas. Peter Jackson realizou uma ficção bem cuidada, com ótimo roteiro e compreensão perfeita das motivações dos personagens, dos eventos que levaram ao crime de morte.

De fato, nem tudo em “Almas Gêmeas” é ficção. Jackson e sua esposa, Fran Walsh, basearam boa parte do roteiro no diário de Paulina Yvonne Parker (Melanie Lynskey), preenchendo as lacunas com boa dose de imaginação, mas sem jamais deixar de lado a coerência. A ousadia maior dos dois é criar uma representação visual sensacional, com bonecos de massa de modelar em tamanho natural contracenando com seres humanos, para o mundo imaginário criado pelas meninas, que juntas escreveram um romance (nunca publicado) e costumavam brincar vivendo as situações do livro. O que emerge no longa-metragem é um maravilhoso estudo de personagens obsessivas perdendo o controle sobre as próprias vidas.

Não há heróis ou vilões em “Almas Gêmeas”. Esqueça a linha bem delineada entre o Bem e o Mal, em que os personagens de “O Senhor dos Anéis” transitam durante a série posterior de Peter Jackson. O universo de “Almas Gêmeas” é diferente, muito mais parecido com a vida real. Paulina e Juliet Hulme (Kate Winslet, magnética e cheia de irresistível energia em seu primeiro papel no cinema) jamais sentem que estão praticando algum tipo de maldade. Eles só querem ser amigas. Em 1954, no entanto, as coisas não eram tão simples assim.

A abertura do longa-metragem mostra as duas correndo e chorando, cheias de sangue. Elas acabaram de matar a mãe de Paulina, e fingem terem testemunhado um crime cometido por um desconhecido. As investigações, no entanto, vão revelar a verdade. O filme então retorna no tempo, até o primeiro encontro entre as duas. Paulina é uma adolescente gorducha e feiosa, retraída e tímida, sem amigos. A chegada de Juliet para estudar na mesma sala muda esse quadro. Irreverente, ousada e desbocada, a nova aluna do colégio local exerce um fascínio irresistível em Paulina. Logo, as duas são unha e carne. O filme é contado do ponto de vista de Paulina.

No início, a amizade é incentivada pelos pais de ambos, até que os primeiros sinais de possível homossexualismo começam a aparecer. Alarmadas, sem saber direito como agir, as famílias tentam restringir os encontros entre elas. De certa forma, a atitude agrava o problema, já que funciona como incentivo para que as duas mergulhem cada vez mais no universo imaginário de Borovnia, a terra criada por ambas no romance que escrevem. Lá, em meio aos sinistros bonecos de massa, as garotas se imaginam como um casal. Juliet é a mulher, Paulina é o homem. As duas têm até um filho – e o “rapaz” parece ser um bocado agressivo.

Peter Jackson demonstra grande talento para conduzir a narrativa com o máximo de tensão. Seu maior mérito, contudo, é modificar aos poucos a natureza das cenas passadas na fictícia Borovnia. As primeiras aparições do reino imaginário das garotas funcionam como um alívio para a tensão da realidade cotidiana das duas, fonte de tensão também para o espectador. Aos poucos, porém, os sinais de agressividade aparecem no mundo de fantasia, e aí o foco da tensão muda inesperadamente, porque sabemos que a agressividade pode migrar a qualquer momento para a vida real. É o que acaba acontecendo em determinado momento.

A galeria de personagens construídas por Jackson é fascinante. Juliet é uma menina linda, carismática, de alegria contagiante. Paulina se torna alguém melhor e mais interessante quando está com ela; por isso, é natural que a amizade evolua para algo mais. Assim como é natural que a reação das famílias seja de choque e repressão. A partir dali, a perda de contato das referências morais das meninas com a realidade é perceptível, e Peter Jackson traduz isso para celulóide com competência.

Não são poucos os cinéfilos que consideram “Almas Gêmeas” o melhor filme de Peter Jackson, superior até mesmo à trilogia “O Senhor dos Anéis”. Os filmes pertencem a gêneros e miram em públicos distintos, mas, de certa forma, esses cinéfilos estão corretos. “Almas Gêmeas” é mais denso, mixa com perfeição mundos distintos de fantasia e realidade e faz um estudo moralmente complexo de personagens fascinantes. O filme aborda um conflito de dimensão bem maior, e mais humana, do que qualquer épico de fantasia.

Vendidos em bancas de revistas sem grande alarde, “Almas Gêmeas” não é um filme facilmente encontrável em locadoras, e muito menos em lojas de revenda de discos. O lançamento é trivial, e o disco contém apenas o filme com corte de imagem original widescreen (sem restauração) e trilha de áudio apenas razoável, no formato Dolby Digital 2.0.

– Almas Gêmeas (Heavenly Creatures, Nova Zelândia/Alemanha/Inglaterra, 1994)
Direção: Peter Jackson
Elenco: Kate Winslet, Melanie Lynskey, Sarah Peirse, Clive Merrison, Peter Elliott
Duração: 99 minutos

6 comentários em “Almas Gêmeas

  1. O filme é muito fácil de se compreender, porém de um jeito mais fácil do que descrito neste artigo.Ele ajudou a ver muita coisa que nem todo mundo percebe no filme!Sem dúvida alguma,é um filme sensacional e merece elogios incansáveis do público!

    Curtir

  2. Vi ontem o filme, é impressionante!! as personagens esfericas, humanas e vivendo uma realidade que mutas vezes tá reprimida dentro de nós, nesse caso refiro-me ao reino imaginário.
    Pauline não é uma personagem é um ser humano real! nao pareceu-me um filme, pareceu-me uma filmagem da vida real, de tão vivo e impressionante!

    Curtir

  3. Tecnicamente, como obra cinematográfica, o filme realmente é ótimo e gostei particularmente da homenagem a Orson Welles. Porém, com relação a crítica, dizer que uma filha que mata a mãe com 45 tijoladas, não é vilã, é apenas um pobre ser humano ansiando por liberdade…. Francamente, a que ponto a sociedade moderna chegou… Normalizar assinaria brutais… Como se matar fosse uma solução banal e corriqueira para nossos problemas.

    Curtir

Deixe um comentário