Drive

[rating: 5]

A narrativa clássica do cinema norte-americano possui uma longa tradição de heróis taciturnos – homens durões e estóicos, que enfrentam desafios enormes, sem ganhar nada em troca e sem reclamar, quase sempre para ajudar gente que mal conhecem. Sujeitos que são verdadeiros anjos justiceiros, e vivem em trânsito, sem lugar de origem, sempre sem saber onde estarão no dia seguinte; caras que aceitam o que o destino lhes reserva como se não fosse possível fazer outra coisa. Esses heróis nasceram no cinema B, em westerns ou filmes noir, e fincaram raízes nos filmes de gênero realizados nos anos 1970 e 1980, um dos melhores períodos da história do cinema americano. “Drive” (EUA/Dinamarca, 2011), estréia do cineasta dinamarquês Nicolas Winding Refn nos EUA, é um legítimo herdeiro desses filmes, e um dos melhores exemplares de cinema de gênero surgidos nesta década.

Trata-se de um thriller policial à moda dos grandes trabalhos de William Friedkin ou David Cronenberg, ou ainda uma colagem do trabalho desses dois diretores. O jovem diretor dinamarquês não tem medo de jogar no liquidificador toda a influência recebida do cinema popular de gênero americano construído nas duas décadas citadas no parágrafo anterior. Refn escancara essa influência logo na magistral seqüência de abertura, uma das melhores cenas de apresentação de personagem dos últimos anos, seguida por uma longa seqüência de créditos mostrados em rosa choque e sublinhados por uma canção eletrônica recheada de sintetizadores, típica da década de 1980, com uma letra solitária e noturna, que dá com perfeição o tom e o clima do resto do filme.

O enredo gira em torno de um personagem masculino sem nome (Ryan Gosling), rapaz caladão que usa um casaco de couro com estampa de escorpião, quase não abre a boca para falar, trabalha como mecânico de automóveis e faz bicos como dublê de motorista em pequenas produções cinematográficas rodadas na região em que mora. À noite, porém, a vida fica mais emocionante, quando dirige automóveis para quadrilhas de ladrões. Sua regra é simples: os bandidos têm cinco minutos para entrar no lugar do roubo, tirar tudo que conseguirem e correr de voltar para o carro. Se estourarem esse tempo, estarão à mercê da polícia. Mas se cumprirem o combinado, ele garante a fuga, usando toda a habilidade que possui na direção. Essa habilidade não se resume a dirigir com perícia, mas é empregada também na capacidade de antever as manobras policiais e em muito raciocínio rápido para imaginar soluções inusitadas a perseguições vibrantes. Esse par de cenas, conduzido com simplicidade e eficiência, revela muita coisa sobre a personalidade do protagonista, e também sobre o filme e seu diretor.

A vida do nosso herói começa a mudar quando entra em cena uma jovem mãe (Carey Mulligan) que se muda para o apartamento vizinho. O marido dela está na prisão, e o protagonista logo desenvolve por ela um sentimento entre simpatia e atração (o filme não deixa esse sentimento muito claro, o que é uma boa sacada do roteiro de Hossein Amini). Essa empatia desembocará em algumas das ações mais estóicas que partem de um personagem principal desde “Os Brutos Também Amam” (1953). Revelar mais do que isso seria estragar as surpresas que o roteiro nos reserva, e elas incluem duas seqüências de violência gráfica que Cronenberg adoraria ter dirigido.

O ator canadense Ryan Gosling, responsável pela escolha de Nicolas Refn como diretor do filme, tem desempenho à altura de seu enorme talento, na pele do protagonista. O rosto impassível apenas sugere, na maior parte do tempo, o turbilhão de emoções que ele guarda dentro de si, sob uma fachada de calma e normalidade. O elenco ao seu lado brilha de forma homogênea, da delicadeza permanente de Carey Mulligan aos trejeitos histriônicos e agressivos de Albert Brooks e Ron Pearlman, nos papéis de dois sujeitos de intenções duvidosas que ajudam a elevar o filme ao patamar de jovem clássico. Esse patamar é confirmado, inclusive, por um excelente terceiro ato (ponto fraco quase onipresente em filmes americanos contemporâneos), onde cada nota parece em seu devido lugar.

A metáfora das notas musicais nos leva a destacar também alguns elementos da trilha sonora do filme. A música sóbria de Cliff Martinez é uma delas – quase minimalista, eletrônica, bem parecida com as canções ouvidas nos filmes policiais americanos dos anos 1970, ela chama a atenção pela discrição com que tenta agregar ritmo e tensão à ação física mostrada nas imagens. Outro destaque está na utilização eficiente dos silêncios, característica que casa perfeitamente com a personalidade do protagonista. A já citada seqüência de abertura é um dos melhores exemplos do uso de uso do silêncio como efeito dramático no cinema; o resto do filme se mantém no mesmo nível.

Por fim, vale destacar a energia imposta ao material pelo jovem dinamarquês, um diretor estilista que tem se mostrado afeito a floreios narrativos desde os trabalhos realizados em sua terra natal. Aqui, contudo, Refn soube refrear esse impulso pela extravagância, preferindo adotar uma direção mais discreta e deixar o enredo se sobressair. Apesar dessa aparente simplicidade técnica, ele tampouco se associa à tradição dos diretores “invisíveis”, representada por nomes como Howard Hawks e Don Siegel. A utilização de ângulos estranhos de câmera (Refn gosta de planos em que o eixo horizontal é deslocado, rebaixado, levantado ou retorcido), a câmera lenta acompanhada de música e os rompantes inesperados de violência são elementos dentro dos quais ele consegue infiltrar estilo dentro de uma narrativa clássica. Essa mistura compõe um filme inventivo, que ao mesmo tempo homenageia e subverte convenções do cinema de gênero americano.

– Drive (EUA/Dinamarca, 2011)
Direção: Nicolas Winding Refn
Elenco: Ryan Gosling, Carey Mulligan, Albert Brooks, Bryan Cranston
Duração: 100 minutos

24 comentários em “Drive

  1. Filmaço ! Poucas vezes vi uma trilha sonora tão bem casada com o filme. A violência gráfica pontual e inesperada também foi muito bem vinda, bem como os silêncio durante todo o filme que deixa bastante espaço pra se pensar e se identificar com ele.

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  2. Filme realmente memorável. Acho que já assisti umas 6 vezes, umas 3 ou 4 foram p/ fins acadêmicos, e ñ me arrependo de nenhuma delas. E esse número com certeza vai aumentar com o lançamento do longa nos cinemas, que eu espero realmente que aconteça cá p/ as bandas de Recife.
    E crítica excelente, como sempre.

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  3. Excelente filme e critica! Parabéns Rodrigo! Aproveitando o fato do filme ser do Nicolas Winding Refn você já assistiu à trilogia “Pusher” dele? Fiquei curioso pela filmografia do diretor após me encantar com Drive e tratei logo de procurar outros filmes e essa trilogia aparentemente é um ponto alto na carreira de Refn.

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  4. Não tenho certeza da estreia desse filme na minha cidade, então já tratei de garantir o meu dvd no melhor estilo brasileiro-que-não-se-importa-em-violar-direitos-autorais. É bom deixar claro que isso não é hábito, só ocorre excepcionalmente. Quanto ao filme, pelo jeito, as expectativas são as melhores.

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  5. Creio que além das semelhanças com Cronenberg, principalmente Marcas da Violência, já que ambos os protagonistas tem uma criatura adormecida dentro de si, Drive tem e a sensibilidade visual e os diálogos cheios de pausas da filmografia de Sofia Coppola, além de uma ótima trilha sonora estilo anos 80 que embala várias sequências dos filmes. Contudo tenho minhas ressalvas quanto a abordagem “silêncio fala mais do que palavras”. Certamente isso pode ser verdade, e assim é em vários momentos de “Drive”, mas as pausas, que deveriam ser cheias de significados, chegam a ser incômodas quando desnecessariamente usadas em alguns momentos banais da obra. Do tipo:
    Irene: Vamos fazer compras?
    Driver: …………………….olha pro chão……………………..olha para ela…………….
    Irene: Faz cara de boba e dá um sorrisinho
    driver: ……………………………dá um sorrisinho também…………………………..
    Irene: continua a fazer cara de boba
    Driver: ………………………….vamos.

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  6. Rodrigo, não conhecia o site e cai aqui por acaso após assistir ao filme “Violência Gratuita” (versão americana)… Estou postando o comentário para parabenizá-lo pelas críticas postadas. Assisti a todos os filmes constantes na sessão “Crítica Recente” e percebi que concordamos bastante na análise dos filmes. Vou acompanhar os posts a partir de agora… Parabéns!

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  7. Ulisses, esse rótulo “cinema independente” não faz muito sentido fora dos EUA. Chama-se de filme independente aquela produção feita sem a ajuda dos grandes estúdios (embora muitas vezes esses estúdios acabem comprando os direitos e distribuindo os filmes depois que eles ficam prontos e começam a rodar pelo circuito de festivais).

    Mariana, obrigado pelos elogios!!

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  8. Oi, Rodrigo.

    Drive é com certeza um dos maiores do ano – se não for o maior. É a constante dualidade do filme como um todo mesmo (fator que inclui os personagens, a trama, a trilha sonora, a direção de fotografia, etc) que dá o charme.

    Fiz um texto em defesa dele (já que uns camaradas estavam o apontado como um filme pedestre, pedantes, etc., etc., etc), e deixei o link para ele na parte de meu nick, caso se interesse pela leitura.

    Abs!

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  9. Rodrigo, assisti a este filme ontem e adorei. Realmente, dá pra gente ver a influência de algo como “Operação França” e “Bullitt”, mas o que acabou me chamando mais a atenção foi a intenção do diretor Nicolas Winding Refn de nos mostrar o personagem principal como alguém que, por trás dessa fachada dura e taciturna, é alguém que tem coração ou, como bem diz a música que toca no filme, um heroi verdadeiro e um ser humano. Porque é isso mesmo que ele é. Ver o protagonista quebrando a regra que ele mesmo estabeleceu e se revelando um escorpião (pra fazer alusão à jaqueta que ele veste) com instinto de agressão e de defesa, quando acuado, é sensacional. Um dos grandes filmes do ano!

    Foi o primeiro longa que vi do Refn e fiquei impressionada com alguns ângulos de câmera dele, que são bem diferentes. “Drive” é um filme de ação estilizado, quase poético, às vezes. Amei mesmo!

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  10. Achei o filme espetacular! Gostei muito da sua crítica! Parabens!
    Pergunta: o personagem principal não tem um pouco dos personagens criados pelo Michael Mann (Frio, calculista e pragmático)?

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  11. Tem sim, Samuel. Muito parecido. De fato, o tema principal do Mann é a ética do trabalho, o pragmatismo e a eficiência naquilo que o personagem faz pra viver, e isso é uma característica marcante do protagonista aqui. Acho que a diferença básica é que nos filmes do Mann a trama sempre gira em torno disso. Em “Drive”, não. Mas a diferença é pequena.

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  12. I love Drive but the more I think about the similarities the more it botrehs me. Ok so Leon was a social misfit who found a niche life through his criminal abilities. His life gets turned upside down by a new emotional connection. He ends up sacrificing everything he has to protect that person. Oh and all of that is tied to a mob crime ring stabbing him in the back. Oh yeah he has a mentor who’s mostly just making money off his back. Does any o this sound familiar at all? Add to that the uncut Euro version of the movie hints at a very different relationship between Leon and the girl. On top of tha there’s the overall Euro sensibility to the filmmaking, which makes sense considering the director.

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