Invenção de Hugo Cabret, A

[rating: 4.5]

Martin Scorsese é um apaixonado por cinema. Além de sua atuação como diretor de alguns dos maiores filmes dos anos 1970 e 1980, há muitas décadas ele tem trabalhado ativamente na preservação de filmes antigos. Suas ações chamam constantemente atenção para a necessidade de preservar a história do Cinema. Em “A Invenção de Hugo Cabret” (Hugo, EUA, 2011), seu primeiro filme em 3D, Scorsese presta uma homenagem comovente ao passado do cinema, entrelaçando-a diretamente ao seu futuro através de um tratamento honesto da questão da tecnologia, que perpassa o filme diante da tela (robôs, invenções mecânicas) e fora dela (o uso do 3D, técnicas digitais de produção e manipulação de imagens).

De certo modo, o tratamento dispensado por Scorsese ao tema do cinema como fábrica de sonhos põe lado a lado, via tecnologia, o passado dos primeiros filmes do pioneiro George Mèliès aos épicos digitais em 3D que parecem estar por vir no futuro. O interessante é que, ao contrário do que muitos podem pensar, “A Invenção de Hugo Cabret” guarda muitas semelhanças inusitadas com os filmes de máfia dirigidos por Scorsese, se não nos temas e no tratamento gráfico da violência, certamente no caráter e na trajetória do protagonista. O filme poderia ser considerado uma espécie de quase-autobiografia disfarçada do próprio Scorsese, já que ele mesmo foi uma criança salva pelo cinema de uma vida na criminalidade.

O primeiro trabalho infanto-juvenil assinado por Scorsese conta a história de um menino (Asa Butterfield) que vive nos subterrâneos de uma enorme estação de trem em Paris dos anos 1930. O garoto acerta a hora dos relógios da estação, na esperança de não se fazer notar pelo severo inspetor do lugar (Sacha Baron Cohen). Hugo passa várias horas por dia tentando consertar o complicado mecanismo de um robô autômato, deixado a ele como herança pelo pai. Este autômato será o elemento de conexão entre Hugo e o dono de uma pequena loja de brinquedos na estação (Ben Kingsley), cuja fisionomia carrancuda e taciturna esconde o desgosto pessoal de um dos maiores – senão o maior – pioneiro da história do cinema.

Nesse filme, Scorsese mostra que nas mãos de um grande diretor o 3D pode ser mais do que uma tecnologia que serve apenas para lotar salas de cinema de curiosos; pode ser uma ferramenta útil na criação de um filme. Enredos que possuem essa textura onírica, de sonho, podem se beneficiar da tecnologia, apropriada para fazer os espectadores imergirem dentro de mundos estilizados, como aquele construído por Scorsese, com a colaboração da sempre ótima direção de arte de Dante Ferretti. Juntos, os dois profissionais criam uma estação de trem que funciona quase como um personagem orgânico, vivo, apinhada de gente nos grandes salões luxuosos e decorados com enormes relógios barulhentos, mas paradioxalmente cheia de labirínticos corredores sombrios e desertos, por onde os passos de um menino magricela ressoam com o eco dos pés de um gigante. Vale acrescentar que Scorsese, junto com Ferretti, consegue equilibrar visualmente com maestria os grandes cenários reais, construídos por Ferretti, e a grandiosidade dos cenários virtuais.

Isso nos leva a outro destaque técnico, que é a fotografia incrível do expediente Robert Richardson. A bela iluminação quase expressionista (mas sem fugir do tom sombrio e ameaçador da realidade, que “tenta” se impor sobre o jovem Hugo em toda a trama) rende imagens expressivas, em particular na segunda metade do filme, quando Richardson e Scorsese investem numa paleta básica de cores, para simular os processos artesanais de colorização dos filmes realizados nas primeiras décadas da história do cinema. A dupla também trabalha de maneira muito sofisticada com a profundidade de campo do 3D, explorando extensivamente as coreografias de encenação em diagonal e movendo a câmera insistentemente em linhas circulares e elípticas, de modo a reforçar os efeitos de profundidade o máximo possível, mas sem abusar das técnicas tradicionais (e já gastas) de atirar objetos na plateia para pegar peças.

A devoção de “A Invenção de Hugo Cabret” para com a história do cinema, associada à atmosfera de encantamento criada por Scorsese, pode dar aos amantes do cinema antigo o sabor de obra-prima. No entanto, não é justo afirmar que o filme inteiro chega a esse status. “Hugo” parece melhor para cinéfilos e conhecedores da história do cinema porque mexem com eles num nível emocional profundo (até porque, convenhamos, a oportunidade de ver originais de Mèliès e dos irmãos Lumière em tela grande, coloridos e em 3D, é mesmo imperdível e emocionante), e no entanto o roteiro do filme tem problemas que precisam ser lembrados.

“Hugo” pode ser dividido em duas metades bem distintas. Na primeira parte, o protagonista é o órfão; esse trecho do longa é “apenas” bom. Os conflitos que movem a história de um menino em busca de um figura paterna que garanta sua sobrevivência e felicidade guarda certa convencionalidade e depende basicamente dos diálogos expositivos para funcionar. Já a segunda metade está alinhada ao melhor que Scorsese já produziu. Essa é a parte em que a narrativa coloca os conflitos de Mèliès em primeiro plano, e o público cinéfilo pode acompanhar todo o sofrimento provocado pela falta de reconhecimento na indústria cinematográfica – dilema que tem ressonância não apenas entre amantes do cinema antigo, mas também entre os interessados na restauração de filmes clássicos pioneiros e naqueles que vêem com preocupação o futuro do cinema. John Logan, o roteirista, é esperto o suficiente para amarrar as conclusões dos dois percursos dramáticos em cenas curtas e que se sucedem, mas não há como negar que o drama de Hugo empalidece, em relação ao espírito resignado do triste diretor veterano interpretado por Ben Kingsley.

Numa leitura alternativa, também é possível propor que o filme de Scorsese não fala apenas do longínquo passado da Sétima Arte, mas também do seu futuro. Scorsese está falando do cinema como fábrica de sonhos; está falando da importância de reconhecer os pioneiros e, também, da influência inevitável que os recursos técnicos proporcionam àqueles que lidam com uma arte que depende, fundamentalmente, da tecnologia. Ele está exaltando o passado ao mesmo tempo em que nos aponta um caminho possível para o futuro. Não é por acaso que o filme foi meticulosamente planejado para ser realizado em 3D, enquanto seu diretor ao mesmo tempo honra uma arte clássica e presta sincera homenagem aos pioneiros.

– A Invenção de Hugo Cabret (Hugo, EUA, 2011)
Direção: Martin Scorsese
Elenco: Ben Kingsley, Asa Butterfield, Chloe Grace Moretz, Sacha Baron Cohen
Duração: 126 minutos

12 comentários em “Invenção de Hugo Cabret, A

  1. Fiquei incrivelmente impressionado com o filme. Sou cinéfilo de carteirinha há pelo menos 15 anos. Desde a adolescência, tenho visto filmes, sobretudo clássicos e cults, e lido livros sobre esse gênero artístico incessantemente. Por ser tão apaixonado pelo cinema minha reação não poderia ter sido outra. É um filme lindo, majestoso e brilhante. Claro que minha condição de amante da sétima arte, como você bem frisou, Rodrigo, faz com que eu veja “Hugo” com olhos mais generosos do que o espectador médio. As imagens, a perícia de Scorsese na forma de contar a história, tudo isso junto é tão reluzente, encantador… É como se estívessemos nos primeiros anos, quando a paixão dos cineastas pioneiros gerou tantas obras-primas fazendo brotar nos corações de milhões de pessoas essa devoção pela imagem em movimento, onde tudo é possível, onde a fantasia e o sonho tornam-se o nosso refúgio e nos fazem esquecer da realidade, por vezes, dura e amarga. Por isso, concordo com tudo que você escreveu a respeito, embora eu não seja um crítico e profundo conhecedor do ramo, mas apenas um curioso. Todavia, creio eu, compartilhamos esse sentimento de plenitude, de satisfação absoluta, ao falar de cinema, e é justamente nisso que reside esse senso comum, essa comunhão de opiniões, ou melhor, de sensações. Finalmente, o uso correto das tomadas panorâmicas e da profundidade de campo em mãos competentes justificam o valor da tecnologia 3D, até então um recurso extremamente banalizado. Mas, posso garantir, pra quem ainda não assistiu, que o maior propósito do uso do 3D nesse filme é que podemos pôr os óculos para assisti-lo e, em vários momentos, chorar emocionado de ver tanta beleza sem que ninguém venha notar. Só lamento não ter ovacionado no final com muitos aplausos uma obra tão bem acabada e cheia de sensibilidade.

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  2. Parabéns ao Rodrigo, pela sua resenha, e também ao José Maria Neto, pelo comentário perfeito. Vocês conseguiram traduzir exatamente a sensação que tive ao ver o filme! Destaque para:
    ” “Hugo” parece melhor para cinéfilos e conhecedores da história do cinema porque mexem com eles num nível emocional profundo” (Rodrigo) e “o maior propósito do uso do 3D nesse filme é que podemos pôr os óculos para assisti-lo e, em vários momentos, chorar emocionado de ver tanta beleza sem que ninguém venha notar. Só lamento não ter ovacionado no final com muitos aplausos uma obra tão bem acabada e cheia de sensibilidade.” (José Maria) 🙂

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  3. Eu já havia lido o livro e scorsese conseguiu deixar tudo ainda melhor, transformou um livro muito bom sobre uma história que envolve o cinema em uma obra-prima cinematográfica.
    E, sim, isso é 3D. Finalmente. Isso prova que 3D é pra ser usado por quem entende realmente de cinema, como Scorsese. Pela primeira vez um 3D espetacular e que não quer “aparecer mais que o filme”.
    Scorsese mereceu o Oscar várias vezes e ganhou por um filme que não acho tão bom, dessa vez ele merece totalmente, essa obra-prima merece o Oscar.

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  4. Assim como “O Artista”, “A Invenção de Hugo Cabret” é um filme feito por um apaixonado pelo cinema para aqueles que amam a sétima arte. Um belo tributo, sem dúvida. Técnica sensacional, uma história bonita e cativante, que me parece ter sido feita para inspirar outras pessoas, quem sabe futuros Hugos, que irão dar continuidade ao bastão que foi iniciado por Georges Méliès e continuado por gente como Martin Scorsese. Enfim, me parece ter sido um filme feito pra sensibilizar.

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  5. O filme é uma homenagem de um grande artista a outro grande artista. Mas, não devemos confundir o valor e admiração que temos por quem é Scorcese e sua contribuição ao cinema, somar a isso nossa admiração por Méliès, e falsificar o resultado que o filme nos oferece.

    É um filme técnico, que não desenvolve-se dramaturgicamente; não há profundidade alguma nos personagens e como obra é extremamente maçante. O dobberman observando seu dono, o inspetor, se acidentando e virando o rosto sem compreender a idiotia do outro; Jude Law dizendo ao filho “Isto é um mistério”; a personagem de Chloe em busca de uma “aventura”; a total falta de sentido em Méliès criar o tal autômato (ele o criou para quê?).

    E lhes faço uma pergunta: se Méliés voltasse do túmulo, qual filme ele gostaria de assistir, a Transformers ou a Hugo?

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  6. Sua colocação é interessante, José. Ela se aproxima um pouco do meu sentimento em relação ao filme, embora sua reação negativa me pareça bem mais forte do que a minha. Mas tente levar em consideração que o padrão pelo qual julgamos Scorsese é altíssimo. Não é todo dia que um diretor (qualquer um) consegue realizar um “Taxi Driver” ou um “Touro Indomável”. O fato de ele ter feito esses filmes, e outros do mesmo calibre, não diminui os filmes só “bons” que ele realiza aqui e acolá. Pelo menos é dessa maneira que vejo.

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  7. É, não acho que a indiscutível qualidade do filme se confunda com a emoção sentida pelos espectadores que mantém uma relação mais estreita com o cinema. A obra por si só é bem acabada. A meu ver, qualquer cinéfilo mais desavisado, sim, aquele que só curte cinema eventualmente, mas sabe reconhecer o que é bom, é capaz de constatar que está diante de algo realmente acima da média. O perfeito uso da metalinguagem realça sobremaneira essa condição, não dá pra negar. Mas não acredito que o filme só “funcione” por essa razão. Digamos, que seja a “cereja do bolo”. Também não vejo empecilho para a devida apreciação da obra a inexistência de um aprofundamento na psicologia dos personagens. Quão necessário é esse elemento no cinema? Seria “Touro Indomável”, “Um corpo que cai”, “Gritos e sussurros”, mais filme que “O picolino”, “A noviça rebelde” ou “O senhor dos anéis”. Cinema também é escapismo, e não é à toa que Hollywood ainda é o que é. Agora, eu concordo que o olhar e a mão de Scorsese fazem toda a diferença nesse aspecto. Não dá pra buscar significado em toda cena e reação dos personagens e, pra mim, o autômato é um dos melhores “mcguffins” dos últimos tempos. Acho também que para a compreensão do cinema é preciso contextualização, até mesmo para um George Méliès, que sabe Deus, ainda que reunisse todas as condições necessárias e não tivesse sido vítima do esquecimento e de sua própria má sorte, daria continuidade aos seus primeiros experimentos, sob uma nova perspectiva, uma nova linguagem cinematográfica. Mas o que a gente sabe da História é o que, mutatis mutandis, está lá no filme de Scorsese.

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  8. Assisti ao filme de um modo muito especial que de certa forma tornou o filme ainda muito mais especial para mim. Era uma sessão da tarde de um dia chuvoso e para meu espanto so havia eu na sala do cinema….imagine só, uma tela panoramica gigante, um som 7.1 funcionando e uma maravilha de homenagem ao cinema, sendo exibido apenas para os meus olhos. A principio imaginei que o lanterninha ia entrar e me dizer: desculpe senhor mas pela falta de público iremos cancelar esta sessão. O que não ocorreu, aplausos à direção da sala (Sem comerciais, apenas como elogio, um cine da companhia Cinépolis), o resultado: Emoção do início ao fim ! Fui uma criança super dotada e portanto muito solitária e muitas vezes livros e sessões de cinema foram meus melhores amigos, então uma sessão exclusiva foi um presente a minha solidão escolhida e um dos momentos mais marcantes de minha existência como cinemaniaco …gostei muito da critica, parabéns ! Quanto ao filme….sem palavras !!!

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