Artista, O

[rating: 3.5]

Enquanto boa parte dos cineastas contemporâneos investe energia criativa em filmes que usam e abusam de truques narrativos mirabolantes, como intensas desconstruções cronológicas e investimento maciço em efeitos especiais abundantes – e isso é feito para dar a impressão de que os filmes têm um estofo dramático que não possuem de verdade –, um tipo menos freqüente de cinema almeja apenas a simplicidade. Alguns desses filmes, como “O Artista” (The Artist, França/Bélgica, 2011), celebram nostalgicamente um passado idílico, em alguns casos que nunca existiu, enquanto flertam com o futuro através de técnicas como a manipulação digital da imagem e, porque não, a construção da trama através de alusões a personagens e episódios que fazem parte de uma mitologia social específica. No caso de “O Artista”, a mitologia de Hollywood.

O longa-metragem de Michel Hazanavicius é um legítimo representante da categoria dos “feel good movies”, aqueles trabalhos meticulosamente construídos para fazer a platéia sair do cinema de bom humor e espírito elevado. Esse tipo de drama cômico (ou comédia dramática, como queiram) ganha interesse especial, aqui, por ter sido realizado como um legítimo representante da época que enfoca (a Hollywood da virada entre as décadas de 1920 e 1930): um filme em preto-e-branco, sem diálogos, em que a música não-diegética – ou seja, executada fora do mundo ficcional para sublinhar dramaticamente as ações dos personagens – é, na maior parte do tempo, a única banda sonora ouvida pelo público. Com exceção de duas cenas curtas, não podemos ouvir ruídos e nem mesmo as vozes dos atores.

O enredo tematiza, da mesma forma que o clássico “Cantando na Chuva” (1952), o período de transição do filme mudo para o cinema falado em Hollywood, entre 1927 e o final da década de 1930. Foi um período turbulento. Naqueles 10 anos, o estado de coisas mudou dramaticamente no cinema norte-americano. Grandes astros do cinema mudo (os galãs Rodolfo Valentino e Douglas Fairbanks, a estrela Mary Pickford e os comediantes Buster Keaton e Charles Chaplin são os maiores exemplos) caíram em decadência, enquanto uma nova geração de atores e atrizes assumia o status de grandes estrelas da Sétima Arte. Poucos veteranos sobreviveram com a fama intacta. Greta Garbo estava na linha de frente dessas exceções.

Algumas histórias verdadeiras vividas por esses nomes de prestígio em Hollywood foram ficcionalizadas por Hanavicius, que co-escreveu o roteiro (e montou “O Artista”), em torno dos fictícios George Valentin (Jean Dujardin) e Peppy Miller (Bérénice Bejo). Ele, um grande astro do cinema sem som, que entra em decadência após o surgimento dos filmes sonoros; ela, uma ambiciosa atriz em ascensão, que vai se aproveitar justamente da nova tecnologia para atingir o estrelato. O longa-metragem conta uma história de amor algo convencional, mas ao mesmo tempo encantadora, porque aborda um período da história do cinema que a maior parte dos espectadores simplesmente desconhece, enquanto celebra (sem medo de abraçar o melodrama, vocábulo que nos tempos atuais virou quase um palavrão) os pioneiros do cinema com muita nostalgia e alguma irreverência.

Interessante observar que, ao contrário do que parece, “O Artista” não abraça integralmente a estética do cinema dos anos 1920, como dá a impressão na superfície. É verdade que o tratamento do som é feito à moda do passado, inclusive com o acréscimo de planos realizados especificamente para representar, de modo visual, sons diegéticos que não podiam ser ouvidos num filme realizado naquela época (o mais evidente desses planos é aquele em que, ao final da primeira projeção de uma grande produção estrelada pelo protagonista George, a câmera se detém no rosto tenso de Jean Dujardin, que se desdobra em sorrisos quando ouve os aplausos da platéia – aplausos que, evidentemente, não ouvimos, mas sabemos que estão lá por causa da alegria que vimos na expressão do ator).

Por outro lado, a montagem rápida, que muitas vezes recusa os planos gerais mais abertos, ou os desloca para o meio de uma cena, é um recurso técnico que só veio se consolidar efetivamente nos anos 1980. Da mesma maneira, o uso constante de planos médios e close-ups que se concentram nos rostos dos atores (e, com isso, deixa um pouco de lado a comunicação com o corpo) aponta uma tendência consolidada apenas nos anos 1960. Nada disso, porém, interfere na fluidez admirável da narrativa, que se desenvolve com agilidade, e culmina com um final gracioso, que contém uma surpresinha divertida.

“O Artista” funciona muito bem tanto para a platéia jovem, que tem pouca ou nenhuma familiaridade com o cinema produzido antes de 1927, quanto para os conhecedores dos tempos de ouro de Hollywood. Estes têm aqui um título para se deliciar, reconhecendo dezenas de pequenas alusões a histórias e “causos” de uma época crucial para o desenvolvimento do cinema como o conhecemos. Este é um filme cuja simplicidade aparente esconde certa dose de ousadia, no sentido em que aposta numa estética que já parecia morta e enterrada – uma atitude digna de aplausos dirigidos à equipe criativa que o realizou. Por outro lado, embora seja encantadora, a historieta que conta não vai muito além do esqueleto narrativo de uma comédia romântica tradicional.

– O Artista (The Artist, França/Bélgica, 2011)
Direção: Michel Hazanavicius
Elenco: Jean Dujardin, Bérénice Bejo, John Goodman, James Cromwell
Duração: 100 minutos

15 comentários em “Artista, O

  1. Felipe, tenho escrito muito nas últimas duas semanas, mas é difícil que consiga manter esse ritmo. Na medida do possível, tenho priorizado filmes em cartaz no Recife (não é o caso de “A Separação”, que é incrível) ou prestes a entrar. Quem sabe dê pra escrever sobre ele na próxima semana.

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  2. Esse é o tipo de filme que de tão simples e bom deve dar até raiva em certos espíritos de porco que já vão ver qualquer filme armado pra encontrar um defeito e dizer, ah eu vi (tal falha) o que ninguém foi capaz de ver, esse filme não é isso tudo não, etc. O que felizmente não é o seu caso, Rodrigo. Acho que esse é um filme que desarma todo mundo. Vi numa sessão lotada aqui no Rio, e o que mais me impressionou foi a diversidade do público, muitos velhinhos assim como muitos adolescentes (todos comportadíssimos, diga-se de passagem, rs). Em suma, um filme sim maravilhoso, um entretenimento excepcional!

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  3. Ainda não vi o filme, mas já li alguns comentários comparativos com “Hugo Cabret”, este sim, um filme excepcional como poucos, que também homenageia o cinema de forma brilhante. Por isso, não sei se você já assistiu, mas gostaria que escrevesse a respeito, Rodrigo.

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  4. “O Artista” é um filme que faz um tributo à sétima arte e é dirigido àqueles que amam cinema. Achei a história cativante e acho que é um movimento interessante perceber um longa desse tipo fazendo sucesso entre crítica e público. Nos mostra que, falado ou mudo, a linguagem cinematográfica é somente um suporte para o relato de uma história, especialmente se a história em si – caso de “O Artista”, por exemplo – for boa.

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  5. José Maria, vi sim e escrevi sobre ele. Veja lá o texto (e sim, concordo que é superior a este filme aqui).

    Victor, de modo geral eu acho que minha leitura desse filme não está distante da sua… seu texto é mais agressivo, mas a diferença está mais no interpretação daquilo que viu do que no filme em si, acredito.

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  6. A ousadia estética de “O Artista” não consegue compensar a falta de um bom roteiro. Depois de passado o encantamento inicial, e de uma primeira hora satisfatória, o restante do filme se afunda numa trama lugar-comum e óbvia, completamente desinteressante. Isso não existe em “Hugo Cabret”, este, sim, o grande filme que merecia ter vencido o Oscar. “O Artista” é uma boa ideia infelizmente mal desenvolvida. Superestimado ao extremo.

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  7. Gostei do filme!
    E da crítica!
    O curioso é que em alguns momentos o filme me lembrou, em temática, “Crepusculo dos Deuses” e “Farrapo Humano”.

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  8. Rodrigo Carreiro é daqueles críticos que vão direto na veia. Se pensei em ser crítico pois adoro cinema encerrei aqui minhas pretensões. Sei que não existe um único ângulo para analisar uma obra seja cinema ou a arte em geral. Mas o que ele diz eu olhei mas não vi! Quando ele comenta finalmente eu digo: é verdade! Não tenho procuração do cara mas quero dizer que cada um no seu quadrado. O meu é a música.

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