Millennium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres

[rating: 4]

Ele é um dos diretores norte-americanos mais celebrados do século XXI. Fez aquele que se tornou talvez o filme mais importante da geração Y (“Clube da Luta”, de 1999), e emendou uma seqüência de filmes bons, ou muito bons (“Zodíaco”, “A Rede Social”), que lhe emprestaram a fama de ser um dos mais autorais e criativos cineastas mainstream da atualidade. É nesse ponto que entra aquela que é, para mim, a pergunta mais fascinante de “Millennium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres” (The Girl With the Dragon Tattoo, EUA, 2011): que misteriosa razão levaria David Fincher a assumir o comando da refilmagem norte-americana da adaptação sueca (feita apenas dois anos antes!) de um romance de sucesso?

A semelhança desse caso com a produção de “Os Infiltrados” (2004), de Martin Scorsese, talvez explique – pelo menos em parte – esse mistério. Como se sabe, o longa-metragem que finalmente deu Oscars de melhor filme e direção ao grande cineasta ítalo-americano de Nova York adaptava, em Hollywood, um filme asiático também lançado dois anos antes. Na época em que “Os Infiltrados” entrou em produção, não parecia certo que um artista do calibre de Scorsese se contentasse em fazer refilmagens. Mas, em certo sentido, a estratégia deu certo. Scorsese conseguiu a maior bilheteria da carreira e ganhou seu muito merecido Oscar, criando um bom filme. O fato de que o resultado final era bastante parecido com “Conflitos Internos” (2002) não parecia importar muito.

O mesmo ocorre aqui. Não há dúvida de que “Millennium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres” é um ótimo filme, com o carimbo de excelência típico de David Fincher espalhado por todas as áreas técnicas: personagens consistentes, trama intrincada mas conduzida com clareza narrativa, subtexto rico em observações sociais afiadas (em particular as críticas contundentes e muito atuais a respeito das violências cotidianas conduzidas contra mulheres), bons desempenhos dos atores, visual apropriadamente “frio” (literal e figurativamente), e por aí adiante. Há um único problema: a versão norte-americana do romance “Os Homens que Não Amavam as Mulheres”, best-seller de Stieg Larsson, é muito semelhante à sua contraparte sueca.

A começar pelo bom roteiro de Steve Zaillian. O sempre complicado trabalho de comprimir a ação dramática para caber no tempo de projeção segue bastante de perto dos cortes e fusões realizados no longa sueco. Há, talvez, um par de cenas no filme de David Fincher que não estão no outro filme. De resto, os eventos mostrados são basicamente os mesmos (Fincher decidiu incluir flashbacks do desaparecimento ocorrido em 1966, evento central da trama, que é investigado por Mikael e Lisbeth, os dois protagonistas), e os personagens têm caracterizações muito parecidas, inclusive fisicamente falando. Uma diferença importante é que o subtexto sobre neonazismo, presente no livro e no filme sueco (até como forma de denúncia para o que ocorre na Europa neste século XXI), foi amenizado em favor de uma abordagem mais forte e concentrada no subtema da violência contra a mulher. Há uma forte seqüência de estupro que foi devidamente mantida, embora tenha sido filmada de maneira mais crua no original sueco.

A maior contribuição de David Fincher parece ter ocorrido na relação mais complexa e sutil que se desenvolve entre Mikael (Daniel Craig) e Lisbeth (Rooney Mara). Em um dos momentos mais esclarecedores e intimistas do filme, os dois aparecem deitados na cama enquanto observam um notebook e discutem a investigação. Mikael tem o braço direito sobre as costas de Lisbeth. Quando o jornalista se movimenta na cama e tira o braço, a hacker reage de imediato, sem interromper o que está fazendo ou desviar o olhar do computador: “por favor, deixe o braço nas minhas costas”. Ele o faz, e a cena segue. Trata-se do momento mais romântico do filme, e um dos raros momentos em que carinhos físicos são trocados por dois personagens de David Fincher (excetuando-se o lacrimoso “O Curioso Caso de Benjamin Button”). É uma grande cena. A relação de afeto entre os dois personagens, discreta e bem resolvida, é o maior trunfo do thriller.

Nos quesitos técnicos, o grau de excelência estabelecido por Fincher não chega a ser surpresa ou novidade. A fotografia de Jeff Cronenweth valoriza o branco e o cinza do inverno sueco, mas evita os tradicionais panoramas da paisagem gelada. O filme investe forte nos interiores e em uma iluminação quase noir que lembra “Seven” (1995), algo que faz sentido, já que essa é a terceira investida de Fincher no subgênero do filme policial que flagra personagens tentando descobrir a identidade de um assassino. A música de Trent Reznor e Atticus Ross é atmosférica e sombria (apesar de excessiva), como deve ser. O trabalho resulta num longa-metragem correto, bem feito e adulto, em que o maior pecado é a semelhança um pouco grande demais com o filme realizado tão pouco tempo antes, a partir do mesmo material.

– Millennium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres (The Girl With the Dragon Tattoo, EUA, 2011)
Direção: David Fincher
Elenco: Daniel Craig, Rooney Mara, Stellan Skarsgard, Christopher Plummer
Duração: 158 minutos

26 comentários em “Millennium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres

  1. Olá, Rodrigo. Antes de tudo, gostaria de dizer que sou um grande admirador seu e costumo ler seus escritos. É a primeira vez que comento aqui.

    Pois bem, ao ver essa fita de Fincher, tive a sensação de quase ter assistido ao mesmo filme de dois anos atrás. Ele muda umas coisinhas, o final especialmente, mas nada conseguiu me surpreender. E emula tantas coisas daquele, mas tentando dar um caráter mais obscuro que o sueco.

    Achei a parte do tutor um tanto forçada, meio “over”. No de Niels Oplev ele era mais irônico. Já via a ideia dessa refilmagem (podemos dizer que é um remake) um tanto desconfiado e, infelizmente, aconteceu aquilo que temia. E será que essa moça mereceu mesmo a indicação ao Oscar?

    Abraço.

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  2. Em vez de ver esse filme terminei vendo o J. Edgar que espero ansioso sua crítica (eu adorei). Sobre o Millenium sempre que vejo esse título lembro da ótima série Millenium com o Lance Henriksen.

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  3. Não conheço o filme original sueco, nem o livro do Stieg Larsson, portanto me baseio somente no filme dirigido por David Fincher. Gostei muito da forma como foi desenvolvida a personagem Lisbeth Salander (quase que num filme à parte). Acho que as melhores partes de “Os Homens que Não Amavam as Mulheres” acontecem com ela em tela.

    No entanto, a história aqui demora muito a decolar, o filme é dirigido com um distanciamento emocional enorme, com momentos muito anticlimáticos. É como se a frieza, o calculismo de Lisbeth fossem a tônica dessa obra, o que esse longa mais representa.

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  4. Andrei, a diferença maior entre os dois casos que você menciona é que o filme sueco foi feito para a TV (sinônimo de produção rápida e orçamento curto). No caso anterior, o filme original é sensacional. Não é o caso aqui.

    Kamila, concordo com a observação sobre o distanciamento, e acho que ela se aplica de modo geral à filmografia inteira de David Fincher (“Zodíaco” e “A Rede Social”, em particular).

    Robson, tenho boas expectativas em relação ao filme do Eastwood, que ainda não vi. Tomara que veja logo.

    Houldine, gosto da interpretação, embora no original sueco a atriz já estivesse muito bem. De fato, penso que é um papel até simples, porque a personagem é tão idiossincrática que permite ao ator trabalhar em registros mais radicais e extremos.

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  5. No caso de Deixe Ela Entrar eu concordo que a refilmagem americana, embora muito boa, foi totalmente desnecessária porque não acrescentou muito e o original sueco já é excelente.
    Porém, quanto ao filme em questão, minha opinião é bem diferente, porque o filme sueco é muito fraco. A refilmagem americana se justificou, até porque nesse caso não é bem uma refilmagem, mas um outro filme com base na mesma matéria-prima, que é o livro.
    Não só o filme de David Fincher é melhor, como consegue ser mais fiel ao livro, e apagou a decepção do filme sueco para os fãs dos livros.
    Quanto ao final, Fincher abreviou a revelação, evitando que Mikael Blomkvist precisasse ir à Austrália, o que pra mim foi muito válido, porque restou mais tempo pra desenvolver a relação central entre os protagonistas.
    O único senão ficou pela revelação do passado de Lisbeth, que somente é descoberto no segundo livro.
    Em resumo, gostei bastante do filme, fez justiça ao livro e defendo totalmente a sua necessidade de existir frente ao sueco.

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  6. Vi ontem. Gostei bastante. Achei a história um pouco comum, sem muitas surpresas mas é um ótimo bem ao meu estilo. Porém não acho que os protagonistas deveriam ter se relacionado. Sei lá, é como que se os protagonistas forem homem e mulher eles sempre têm que ter relacionado afetivo. Teria achado mais interessante a parceria profissional (ou de amizade) entre os dois. Mas no geral é um grande filme. Comecei a ler o livro também e já comprei o segundo (quem sabe os outros dois também não virem filme?).

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  7. O filme sueco sem dúvidas é melhor. Discordo completamente de você, Rodrigo, ao dizer que “a maior contribuição de David Fincher parece ter ocorrido na relação mais complexa e sutil que se desenvolve entre Mikael (Daniel Craig) e Lisbeth (Rooney Mara)”, essa relação no remake é bem fraca, o sueco sim entrega uma relação mais complexa e sutil. A impressão que tive ao ver o filme de Fincher foi a de que ele estava muito mais preocupado com a estética, insistindo em nos lembrar que ele foi diretor de videoclipes e de publicidade, muitas das cenas parecem encenadas demais, sem alma, falta naturalidade, os personagens não parecem espontâneos em muitos momentos, inclusive as cenas de sexo e estupro ganham uma certa artificialidade também, de fato falta a crueza do original sueco. Os minutos finais deste remake são bem fraquinhos, e esta é uma das cenas que torna a Lisbeth de Rooney Mara inferior, falta a personalidade e sutileza que foram tão bem trabalhadas no filme original, sem contar que Noomi Rapace é melhor atriz que Rooney. O final do original trazia um gancho para a sequência que nos deixa com muita vontade de saber mais sobre a menina que brincava com fogo. E além disso, algumas cenas, que já eram diferente do livro no sueco, foram mantidas aqui exatamente como são no filme sueco. Enfim, David Fincher é um diretor superestimado. Sim, ele fez o excelente “Zodíaco”, mas sua carreira é bem irregular, virou regra os filmes dele receberem indicações ao Oscar, mas quem liga pro Oscar?

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  8. Assisti ontem o remake, muito bom mesmo, fiquei pensando em várias cenas, uma delas foi dessa cena do braço, sensacional.

    Ela trabalhou bem, vamos ver o Oscar 🙂

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  9. Conferi a trilogia sueca no ano passado e gostei tanto dos filmes que não vejo a hora de ter em casa os três longas em Blu-Ray. Pena que no Brasil só lançaram o primeiro até o momento, o segundo e o terceiro serão lançados ainda este ano. Ainda bem.
    Agora vamos ao filme. Na última sexta, 3 de fevereiro, fui conferir a versão USA nas telonas, e a impressão que tive foi de deja vú. O filme é bom, mas há vários momentos em que tive a sensação de estar assistindo ao mesmo filme, porém com atuações um pouco inferiores por parte de alguns personagens. A Lisbeth de Rooney Mara é boa, no entanto está em num nível abaixo de Noomi Rapace. A Lisbeth sueca é mais bem interpretada e sinceramente fiquei na dúvida se realmente Rooney Mara mereceu a indicação ao Oscar.
    A tão comentada cena do estupro ficou “xoxa” na versão de Fincher, o Bjurman sueco é realmente nojento e a cena também é mais impressionante. Faltou um cuidado maior com a cena na versão USA.
    Para finalizar, o que me deixou com uma pulga atrás da orelha foi o fato do Fincher ter escolhido um ator exatamente igual ao sueco para interpretar o vilão. Até o penteado utilizado foi o mesmo. Parece que o Fincher assistiu ao filme sueco e o que ele não gostou alterou, mas o que gostou ficou intacto.
    Na minha opinião o filme mercece apenas três estrelas. Acredito que o segundo filme, se o Fincher fizer, será melhor que o sueco. A versão sueca do segundo não é tão boa quanto o primeiro. Talvez no segundo ele consiga acertar. Ao meu ver esta adaptação do livro foi desnecessária até porque o filme sueco ainda é recente.

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  10. Olá Rodrigo,

    Gosto muito do seu site. Sempre entro aqui para ler as críticas. Bem, eu discordo que o remake é igual ao filme sueco. O filme sueco não desenvolve bem os personagens, quase não mostra a Erica, e não tem mesmo o mesmo ritmo do americano. Quando assiti ao filme sueco, fiquei super decepcionada, pois achei que os atores não tinham nada haver com os personagens.

    A versão americana, na minha opinião, é muito superior, mais complexa, melhor desenvolvida. David Fincher arrasou.

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  11. Já deu pra ver pelas opiniões de vocês, aqui neste mesmo texto, que a comparação entre as duas versões do filme pode ser favorável ou não, dependendo do ponto de vista. Isso depende de cada um.

    Para mim, o paralelo com “Os Infiltrados” é muito pertinente. Nos dois casos, a refilmagem americana trabalha melhor a caracterização de personagens e aprimora detalhes do roteiro relativos ao enredo. Mas, nos dois casos, a existência do filme anterior é absolutamente crucial para isso, uma vez que muitas soluções narrativas foram reaproveitadas pelos diretores americanos.

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  12. Percebi várias semelhanças com o original sueco, mas achei o filme de Fincher bastante superior. Aliás, discordo quanto à questão das refilmagens. Considero válida uma refilmagem quando o original tinha um potencial que não foi alcançado em virtude de um diretor menos talentoso. É o mesmo caso com Os Infiltrados, que reimaginou um fraquíssimo original e tranformou em algo completamente diferente. Não deixa de ser um pouco de falta de criatividade, mas não chega a ser um demérito das refilmagens.

    Abraço!

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  13. Fraquíssimo original?? Sério que tu acha isso, G4mbit? Então me explica, porque eu gosto pra caramba desse filme. Acho o roteiro redondinho, o ritmo é intenso, as soluções visuais bem boladas. Tudo bem, o Scorsese injetou um subtexto interessante e trabalhou a caracterização dos personagens, algo que é especialidade dele, mas reaproveitou muita coisa do original…

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  14. Faz uns 6 anos que já vi o filme, que não está mais tão fresco na minha memória. Mas me lembro bem da direção estilizada-amadora, da falta de escopo e das composições visuais pobres. Não achei tão ruim quanto dei a entender, mas não é um grande filme, principalmente se comparado à versão de Scorsese.

    ****

    Posso estar parecendo americanófilo ou elitista, mas a técnica apresentada pelo cinema americano, em todos os aspectos, da concepção artística aos méritos técnicos, estão integrados de forma orgânica e coesa. E isso faz uma diferença tremenda. Não estou dizendo que todos os filmes americanos são tecnicamente superiores aos estrangeiros, mas o conhecimento de Cinema dos nossos colegas estadunidenses se revela crucial em comparação aos demais, com exceção, talvez, dos europeus (que, no entanto, exploram temas diversos do cinema americano, empregando uma estética diferente, mas apropriada a seus propósitos). Um filme americano, em regra, apesar de seus defeitos, apresenta uma coesão quase invisível, o que facilita a imersão do espectador na história que está sendo contada. Isso inclui desde a montagem invisível/natural (introduzida por Griffith, salvo engano) até o trabalho do diretor, que deve empregar as técnicas necessárias à sua interpretação do que está sendo contado.

    Fora dos Estados Unidos conhecemos poucos diretores, em números absolutos, que realmente valem a pena. Talvez isso ocorra porque é difícil controlar o ego de um “artista” que acabou de entrar no mercado e está interessado em imprimir sua marca pessoal na sétima arte. Querem utilizar todas as técnicas que aprenderam, resultando numa falta de coesão e naturalidade o trabalho. Os filmes acabam saindo com uma mão pesada, o que me incomoda bastante. Outro problema que vejo com frequência é o caso do original sueco de Os Homens Que Não Amavam as Mulheres, que peca pela direção que, apesar de firme, se revela absolutamente genérica e nada atmosférica, em comparação ao filme de Fincher.

    Não estou generalizando os filmes feitos fora dos Estados Unidos, mas apenas tentando entender o porque de os melhores cineastas serem formados ou trabalharem lá.

    Abraço!

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  15. Ao contrário do G4mbit, eu adoro o cinema que é feito em várias partes do mundo fora dos Estados Unidos. Em grande parte das vezes são filmes mais ousados e criativos. Os filmes americanos são feitos pra agradar a massa, esse remake de “Os homens que não amavam as mulheres”, por exemplo, está repleto de frases de efeito, se não me engano todas elas ditas pela Lisbeth, isso me irrita. Estou de saco cheio de Hollywood, o que é feito de melhor nos EUA é produzido pelos independentes.

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  16. G4mbit

    Você viajou na maionese com esta frase:

    “Fora dos Estados Unidos conhecemos poucos diretores, em números absolutos, que realmente valem a pena.”

    Está cheio de diretores ótimos no exterior, talvez por isso hollywood vive levando-os para lá e tentando pasteurizá-los.

    Se VOCÊ conhece poucos diretores que valem a pena, então procure (se realmente ama cinema), não espere que eles venham até o cinema mais próximo de você.

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