Parceiros da Noite

[rating:4]

Hollywood pode até perdoar um fracasso, mas não dois – e muito menos quando esta segunda chance afunda após gerar enorme repercussão negativa. Pois foi exatamente isso o que ocorreu com William Friedkin. O garoto de ouro da geração chamada de New Hollywood, vencedor do Oscar de direção aos 36 anos (“Operação França”), começou a ter o prestígio ameaçado com o desastre de “Comboio do Medo”, um filme que custou quase dez vezes mais do que havia sido previsto. Mas foi com o thriller “Parceiros da Noite” (Cruising, EUA, 1980) que Friedkin assinou o próprio rebaixamento para o terceiro escalão da indústria do entretenimento, quase enterrando a própria carreira.

Culpa dos movimentos GLS. Antes mesmo de o filme ser lançado, ativistas se lançaram em uma campanha agressiva contra a obra. Todo mundo imaginava que um filme sobre um serial killer que matava homossexuais era fruto político da visão moralista e conservadora da indústria do cinema. Colunistas famosos de jornais importantes, como o Village Voice, aderiram à campanha. Ativistas a favor dos gays faziam panfletagem contra o filme nas filas dos cinemas. “Parceiros da Noite” atingiu até mesmo Al Pacino, o ator mais quente daquele momento, cuja carreira desceu ladeira abaixo (ele só viria a se recuperar do golpe quase dez anos depois). Tudo isso porque se achava que o longa-metragem apresentava uma visão preconceituosa e homofóbica da subcultura gay.

Verdade ou mentira? Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Quem conhece a obra de William Friedkin sabe que ele sempre se interessou por personagens impulsivos, atormentados, torturados, com uma queda pelo sofrimento auto-imposto – não esqueçamos que Popeye Doyle, o tira durão de “Operação França”, gostava de apanhar de mulher, e de ser algemado à cama por prostitutas. O gosto pela dor não apenas marca presença forte neste filme, mas é absolutamente adequado ao tipo de vida levado pela fauna humana que Friedkin está interessado em radiografar. E a radiografia do submundo gay aparece, ainda que filtrado por uma visão nitidamente espantada, de modo acurado. A produção é irregular, mas funciona como thriller e como estudo de personagem.

Acima de tudo, sobressai o cuidado meticuloso que o diretor dedica à reconstituição do ambiente sórdido, sombrio e cheio de excitação da cena gay de Nova York. Friedkin não poupou esforços para ser fiel à realidade: filmou em boates homo de verdade e contratou freqüentadores para fazer figuração. Tomou o cuidado de orientá-los a não fazer nada explícito diante das câmeras, mas mesmo assim a carga homoerótica de “Parceiros da Noite” é enorme. Friedkin abusa dos longos travellings laterais para apresentar o espectador a um universo exótico, repleto de couro negro, correntes e códigos visuais esquisitos. Numa das melhores cenas, o vendedor de uma loja de roupas explica ao personagem de Pacino que a cor de um lenço, e a posição em que ele é colocado na roupa, podem denunciar as preferências sexuais de quem usa a peça.

A história é bem simples. Convencido da existência de um assassino em série que mata homossexuais e desmembra corpos, jogando-os no mar, o chefe da polícia decide infiltrar um detetive no submundo gay. Steve Burns (Al Pacino) é escolhido por ter o mesmo tipo físico das últimas duas vítimas. Ele hesita. É heterossexual, tem namorada firme (Karen Allen) e não conhece nada daqueles lugares. Sabe, contudo, que a chance de galgar a hierarquia da polícia é alta, caso tenha sucesso na missão. O que não sabe é que a caçada ao matador vai ser mais dura e mais longa do que espera – e que ninguém normal sai intacto de uma descida ao inferno. Esta viagem soturna é acompanhada pela magnífica música atonal – uma espécie de free jazz from Hell – do brasileiro Egberto Gismonti

William Friedkin se inspirou num romance de sucesso, escrito por Gerald Walker, para escrever o roteiro. Manteve o esqueleto narrativo do caso, mas optou por uma abordagem bem diferente, retirada de longas conversas com um ex-policial que o havia assessorado na época de “Operação França”. As experiências deste tira mostravam como é difícil a vida de detetives infiltrados no submundo. Assim, o cineasta optou por se afastar da narrativa clássica – a perseguição e a conseqüente captura do assassino – e, aos poucos, se concentrar no modo lento, quase imperceptível, como a experiência-limite vai alterando a visão de mundo e os hábitos do policial, fazendo-o colocar em dúvida a própria sexualidade, e com isso o próprio futuro.

Para enfatizar a abordagem incomum, Friedkin optou por revelar a identidade do criminoso logo no início e adotou a estratégia de filmar os assassinatos em ambientes cada vez mais escuros, de modo que paulatinamente se torna cada vez mais difícil identificar o rosto do matador. Este detalhe, ressaltado pela extraordinária fotografia de James Contner (repare na iluminação das tomadas que mostram o movimento das sombras na madrugada do Central Park), acaba se mostrando crucial para a compreensão do inesperado final do longa-metragem.

Por outro lado, a lenta mudança de foco narrativo causa problemas ao ritmo. Em certo momento, quando fica evidente certo desinteresse do filme pela trama policial, a investigação de Burns é quase relegada a segundo plano. Ele a retoma de maneira brusca e inesperada, com a solução do caso praticamente se atirando na frente dele. Ainda assim, o filme funciona. E é importante mencionar, ainda que possa parecer óbvio, a ótima atuação de Al Pacino, em um papel corajoso e que tem uma característica incomum para personagens dele – Steve Burns não sabe articular frases muito bem, e passa boa parte do tempo calado. Belo filme.

Por causa do tema polêmico, a Warner levou dez anos para tomar coragem e lançar “Parceiros da Noite” em DVD. A edição especial norte-americana traz o filme restaurado, com ótima qualidade de áudio (Dolby Digital 5.1) e vídeo (widescreen 1.85:1 anamórfico). Há ainda um comentário em áudio do diretor e um documentário retrospectivo (43 minutos). No Brasil, o DVD carrega o selo da Lume, e não tem os extras.

– Parceiros da Noite (Cruising, EUA, 1980)
Direção: William Friedkin
Elenco: Al Pacino, Paul Sorvino, Richard Cox, Don Scardino
Duração: 106 minutos

34 comentários em “Parceiros da Noite

  1. Olá Rodrigo. Sempre leio suas criticas. Acho que são mito bem elaboradas e através delas já comprei vários filmes para minha coleção. Só queria fazer uma pergunta: Esse filme Parceiros da Noite com Al Pacinto foi lançado em DVD mesmo??? Eu já procurei em vários lugares e não encontro. Até li em outros sites e a informaçao é de que este filme ainda ao foi lançado em DVD no Brasil. Estou à procura deste filme faz tempo, juntamente com SERPICO também estrelado por Al Pacino. Obrigado. Abraços.

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  2. parabéns pela resenha deste filme, assisti no cinema, há muito, muito tempo, não lembrava direito da história mas gostaria de ter o dvd, espero que saia no Brasil, se não vou procurar o importado. valeu e parabéns.

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  3. Eu acho esse filme muito bom! Só que não é pra qualquer público. Quem está acostumado a assistir filmes-pipoca não curtirá o enredo. Isso porque o filme adota uma abordagem diferente: ao invés de se concentrar naquele famigerada cadência da investigação policial truncada, que culmina num desfecho onde dizemos: “-Oh, esse cara é o assassino!”, William Friedkin focaliza o mundo e os tormentos do personagem principal, como bem explicou o Rodrigo. É um filme que te deixa com muitas perguntas ao final, independentemente da captura do serial killer. Algo, inclusive, bem parecido com o que Kubrick fez em “O Iluminado”: Deixa o expectador tirar suas próprias conclusões. Tenho esse filme convertido em DVD, de um VHS que comprei de uma locadora. Vira e mexe assisto novamente, tentando capturar alguma deixa que me permita inferir o que realmente aconteceu no psiquismo do detetive encenado por Pacino.

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  4. Pergunta: No filme o Steve Burns (Al Pacino) tinha um vizinho que no final foi morto. Quando o chefe de policia chega fica surpreso . Foi o Steve Burns que matou?

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  5. Em 1980 eu era apenas um bebe! Mas dez anos após tive oportunidade de assistir a esse filme! Realmente o filme é eletrizante em alguns momentos eu até diria que é excitante ver o Al pacino com 30 anos a menos!! Mas o que de fato me intriga no filme é a cena final: O amigo de Pacino Morto, depois a mulher dele vestindo aqueles acessorios sadomaso e ele fazendo a barba. Ele era bissexual? Se descobriu bissexual? Ou ainda no “fundo” ele era o assassino das “meninas”?

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  6. Gostaria muito de obter uma copia do Parceiros da Noite .voce nao me faria uma e me venderia.moro no Rio.
    Eu quero muito o filme .
    Me responda por favor
    desde ja’ agradeco imensamente,
    Jorge Nova

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  7. A respeito do assassinato do amigo e vizinho, acho que quem matou foi o namorado, o Greg, por ciumes, quem sabe. E com certeza o personagem do policial se torna confuso com a sua sexualidade, mas não a ponto de se tornar bisexual… a exposição que ele teve a esse mundo gay o fez se sentir meio estranho a seu proprio respeito, mas acho q não a ponto de se aventurar no mundo homosexual.

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  8. Ola Rodrigo
    Não gostei do filme só mostrar gays prosmiscuos poderia ter um casal gay com relação estável, as cenas nos bares, são super reais, a atuação de Pacino como sempre arrasando.
    Não acho que aquele cara fosse mesmo o assassino, parecia ser um homem mais forte, sei lá…
    Na cena final, deixa muitas dúvidas, e a cara do Pacino se barbeando e ouvindo o som das roupas de couro que a namorada vestiu, é simplesmente arrebatadora, pque ele parece surpreso e ao mesmo tempo gostando da idéiia. Bom , eu entendi assim. Pra mim quem matou aquele vizinho foi o policial que antes transava com gays na viatura policial.
    Aquela cena onde um negro de cueca e chapéu, ( bizarro) dá um tapa no rosto do personagem do Pacino, achei muito apelativo…que figura é aquela? Credo! kkkk Eu confessaria até o assassinato do Kenedy e do Marin Luther King…
    Mas vale a pena ver o filme, é punk.

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  9. Fenomenal !Revi este ontem no TCM e continua mais atual do que nunca.
    A frase do “assassino” é emblemática: “Você me fez fazer isto.”, exprime sem pudores a homofobia ainda presente.

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  10. Boa noite, Rodrigo

    Este filme foi exibido ontem (17/07/10) no canal TCM (Sky) e eu o vi parcialmente, porque caí no sono. Uma grande pena. Acredito que este filme e “Um Dia de Cão” foram duas apostas de Pacino que resultaram em sua sólida carreira.

    Fiquei em dúvida apenas sobre o ator que interpretou o assassino. Sempre gosto de consultar o IMDB, mas não consegui identificá-lo. Há vários nomes / personagens no elenco. Você sabe dizer qual é o nome do ator?

    Grata.

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  11. Boa noite a todos!
    Realmente, vi este filme recentemente no meu amado TCM e ele me marcou até hoje, tanto que estou pesquisando a respeito na internet e apareceu esta página… Nunca tinha ouvido falar dele antes… é um filme que te faz pensar horas sobre o que realmente ocorreu, principalmente com o personagem do Al Pacino. Porém há algumas cenas emblemáticas – como a que ele está na cama com a namorada e a câmera focaliza o rosto dele no momento em que ela fará sexo oral nele, que demonstra uma perturbação que me fez pensar se ele tb. o fez em algum homem ou algum fez nele? Além disto, quase no final, ele chega na casa dela e vai direto para a pia lavar a boca, lembram? Por último, marcou a cena do vizinho morto: será que ele não teve algo com o policial infiltrado e este o matou pq pensou nas consequências da revelação ao fim do caso? É uma hipótese…? Filme marcante!!! Quem tem o TCM, acompanhe a programação e não perca se for exibido novamente!!!!

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  12. O filme não foi tão catastrófico assim para a carreira de niguém, se lembrarmos que Al Pacino faz Scarface 83 e mesmo Friedkin tem um de seus melhores filmes já em 85, Viver e Morrer em L.A.

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  13. Você tem razão, Bhakta. Só observo que não usei a palavra “catastrófico”, e acho que o mal que o filme fez às duas carreiras pode ser visto a médio e longo prazo. “Viver e Morrer em LA” é um grande filme, mas já foi feito com orçamento muito menor do que aqueles com que Friedkin estava acostumado a trabalhar (e, sendo polêmico também, atolou de vez o diretor). E Pacino iniciou aqui uma longa e gradual queda de popularidade, apesar da qualidade também inquestionável de “Scarface”. Abraços.

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  14. Há anos tenho vontade ver esse filme e não consigo ter acesso a ele. E, como já falaram, o Serpico como mesmo Pacino é outro que nunca consegui ver.

    Rodrigo, o DVD tem legendas em português ou pelo menos em inglês mesmo (lendo consigo entender razoavelmente bem).

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  15. Um outro filme do Pacino que acho que não valorizam muito (eu pelo menos não escute muitos comentários) e que eu acho espetacular é o Pagamento Final (Carlito`s Way) com o Sean Penn. Que filme.

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  16. Oi, Rodrigo! Também sou um que conheceu este filme muuuuito obscuro (em vários sentidos) no canal TCM. O que mais me chamou a atenção foi a grande atuação de Al Pacino. Muito difícil e corajosa. Fiquei surpreso ao saber por você que ouve uma esfriada na carreira do grande ator por conta de Parceiros da Noite. Então acho que “Sea of Love” (esqueci o nome em português) deve ser fruto destes problemas, não?
    Muitas pessoas se fecham em suas conchas e não aceitam outra visão do mundo. Talvez vendo um espelho? Bom, valeu pelo post!

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  17. E um otimo Filme. Simplesmente uma das melhores atuações de pacino, contido, e demostrando uma instabilidade com ele mesmo. Vê esse filme por acaso hj no MAX, e acabei me supreendendo.

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  18. O FILME PECA POR TER UMA VISÃO MUITO MASCULINA DA VIDA, A TESTOSTERONA SAI POR TODOS OS PÓROS E LADOS… COMO DIZ UMA MÚSICA: “:HOJE É O DIA DA GRAÇA… HOJE É O DIA DA CAÇA E DO CAÇADOR…”. O FILME VAI DEVORANDO CONVICÇÕES E ESTEREÓTIPOS… NÃO ESTOU USANDO NENHUM JARGÃO HOMOFÓBICO….. MAS É REPULSIVO… MUITA BARBIE JUNTA… A ÚNICA FIGURA MAIS FEMININA QUE VI NO FILME FOI A DO TRAVESTI COM PERUCA LOURA QUE PASSA UMA INFORMAÇÃOZINHA PARA O POLICIAL… O DIRETOR PODIA COLOCAR MENINOS MULHERES CIRCULANDO PELA TRAMA, DANDO GRAÇA E ESPERANÇA AOS SOBREVIVENTES QUE ASSISTEM AO FILME… POIS NÓS TAMBÉM QUASE MORREMOS ENQUANTO VEMOS A HISTÓRIA SE DESENROLAR… NÃO HÁ REDENÇÃO, O CLIMA É DE PESADELO… QUE SAUDADE DO GRANDE PINTOR BRASILEIRO DI CAVALCANTI… FALTA COR E LUZ NO FILME… É ASSUSTADOR! AQUELES POLICIAIS TORTURANDO O RAPAZINHO SUSPEITO DE SER O ASSASSINO? QUERIAM ENCONTRAR O AUTOR DO CRIME A QUALQUER PREÇO… AQUELA ESCUTA DENTRO DO CARRO DOS POLICIAIS… UMA POBREZA..! ..EQUIPAMENTOS DE ESCUTA DE PÉSSIMA QUALIDADE… DEPOIS O BANDO DE HOMENS ARMADOS INVADINDO O PRÉDIO PARA CAPTURAR O PRETENSO ASSASSINO… ACHO QUE O DIRETOR ESTAVA DEBOCHANDO DA NOSSA NOBREZA DE TELESPECTADORES….
    CONFESSO A VOCÊS QUE SENTI MUITO MEDO ASSISTINDO AO FILME! AS SOMBRAS ASSUSTADORAS!
    AL PACINO É UM ÓTIMO ATOR, MAS PREFIRO O AL PACINO DE UM DIA DE CÃO, ASSALTANDO UM BANCO PARA CUSTEAR AS CIRURGIAS DE SEU AMOR TRANSEXUAL…
    QUERIDINHO, QUERIDINHO… EL PACINO! HOMEM E ATOR…
    DESCULPEM TODAS AS BOBAGENS QUE ESCREVI AQUI! O FATO É QUE O FILME PARCEIROS DA NOITE É IMPRESSIONANTE!

    CLÁUDIA.
    RIO DE JANEIRO, JUNHO 2012.

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  19. Rodrigo, li em algum lugar que aquela cena final do filme em que o vizinho gay de Steve Burns (Al Pacino) é assassinado não consta do livro que deu origem ao filme.

    Agora, o que o Serial Killer não conseguiu fazer (afinal só matou meia dúzia de homosexuais), a AIDS fêz em proporções infinitamente superiores, a partir do início da década de 80. A propósito, antes da sigla AIDS (Acquired Immune Deficiency Syndrome) ser adotada, era usada a sigla GRID (Gay-Related Immune Deficiency).

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  20. Não entendi o final… Só depois de ler isto é que comecei a perceber.

    Fica em aberto a identidade do assassino, há 4 hipóteses:

    1- Stuart, apanhado pelo policia, (caso encerrado).

    2 – Greg que matou o namorado de Ted, no final, dando a entender que poderia ser um homicídio de namorados mas também o assassino da história.

    3 – Pode ser o policia da esquadra 6 que foi as prostitutas e que aparece no local do homicídio.

    4 – O protagonista Steve porque no final vê-se que tem a roupa igual à do assassino.

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