Rede Social, A

[rating: 5]

Durante a pré-produção de “A Rede Social” (The Social Network, EUA, 2010), quando o roteiro de Aaron Sorkin permanecia guardado a sete chaves, rumores davam conta de que David Fincher iria dirigir um filme sobre o Facebook. Eram boatos desconcertantes. Como assim? Um cineasta que parecia genuinamente interessado em pessoas iria se dedicar a filmar uma versão cinematográfica de um fenômeno da cibercultura? Qualquer preocupação de que Fincher pudesse estar dando uma guinada radical nos rumos de sua carreira, no entanto, se dissipam ainda nos primeiros minutos de projeção. “A Rede Social” não apenas está à altura dos melhores trabalhos do cineasta, como também traz consigo uma série de marcas estilísticas que dão à produção uma textura típica do homem que a dirigiu.

Como todos sabem, o filme narra a história do surgimento e da consolidação do Facebook como a rede social mais interessante da Internet (pelo menos em 2010, quando escrevo), e também como primeiro fenômeno da cibercultura a fazer a equipe do Google coçar as cabeças e franzir os cenhos. Fincher faz isso, contudo, concentrando-se em explorar a complexa, curiosa e significativa contradição entre a personalidade de seu criador – Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg), um misantropo de carteirinha – e a função social de sua criação: promover a amizade e tornar as pessoas mais próximas (se não no sentido estritamente geográfico, com certeza no campo afetivo). Em outras palavras, “A Rede Social” realiza um primoroso estudo de personagem, auxiliado por um elenco brilhante e pela minuciosa e impecável reconstituição de época que já se tornou característica central (e rotineira) do trabalho de Fincher.

A estrutura não-cronológica do roteiro de Aaron Sorkin (um especialista em séries de TV, que aqui revela uma verve especialmente afiada para diálogos, na melhor tradição de Howard Hawks e das comédias de gênero dos anos 1930-40) intercala longos flashbacks, que recontam episódios importantes do nascimento e do crescimento do Facebook, com cenas do presente (dois julgamentos independentes, nos quais Zuckerberg está sendo processado por colegas de universidade que alegam serem co-autores do site). O vai-e-vem no tempo pode ser um tanto intrincado, mas espectadores atentos não devem ficar incomodados, porque David Fincher jamais perde de vista o eixo narrativo principal, que está no contraste cada vez maior entre a personalidade apática e introvertida do protagonista e a imagem jovial, alegre e popular da rede social que ele criou.

A pergunta central, aqui, é a seguinte: como é que um sujeito tão desinteressado dos seres humanos, como Zuckerberg, foi capaz de criar, num ato instintivo e em apenas um par de horas, um sítio digital tão eficiente na função de realizar justamente o oposto? Este eixo narrativo fica evidente já na longa e magnética seqüência de abertura, quando a namorada (Rooney Mara) de Zuckerber rompe com ele durante um jantar de rotina – a cena deixa claríssima a inspiração nas velhas comédias de Hawks, com diálogos à velocidade da luz e muito subtexto, enquanto nos permite enxergar claramente a personalidade alienada do herói, um cara que não consegue escutar ninguém ao seu redor e, mesmo quando conversando com os outros, está permanentemente travando uma espécie de diálogo interior incessante. O pé na bunda vai ter como conseqüência a criação do Facebook, naquela mesma madrugada, mas não como uma forma encontrada pelo estudante de Computação de Harvard para vencer sua apatia, e sim como uma maneira de se vingar cruelmente da garota. Algumas horas depois, a brincadeira inconseqüente se transformou numa idéia promissora que viria a valer, anos mais tarde, a bagatela de US$ 33 bilhões.

Ao longo de todo o filme, Fincher explora esse lado misantropo da personalidade de Zuckerberg, concentrando-se nas confusões arrumadas por ele com bons amigos (Andrew Garfield, excelente no papel do brasileiro Eduardo Saverin); com colegas de universidade (os gêmeos Winklevoss, interpretados por Armie Hammer); e com sócios famosos que encontra pelo caminho (Sean Parker, na pele de Justin Timberlake). Trabalhando basicamente com atores jovens e relativamente inexperientes, e imprimindo aos diálogos travados por eles um ritmo alucinante o tempo inteiro – o que confere dinâmica e ritmo ágil a um longa-metragem 100% composto por cenas de diálogos, sem uma única seqüência de ação física –, o diretor alcança um resultado realmente excepcional.

Para criar um universo visual que espelha o mundo interior do protagonista, Fincher lança mão de seu talento natural para a reconstituição de época. O campus de Harvard e as frias e iluminadas salas de audiência de tribunais são reconstruídos com minúcias, sempre utilizando uma paleta de cores monocromática, de maneira a simular a visão de mundo de Zuckerberg: capaz de captar os mínimos detalhes, mas vendo-os de maneira uniforme e redutora, como se fosse capaz de vislumbrar as nuances e texturas, mas não tivesse interesse ou capacidade de vê-las realmente. Da mesma forma, o uso de lentes teleobjetivas – um tique estilístico que ele carrega desde sua época de diretor de videoclipes e comerciais de TV – produz imagens praticamente sem profundidade de campo nenhuma, o que resulta em muitos primeiros e segundos planos fora de foco (muitas vezes, aliás, ele próprio está fora de foco, o que diz muito a respeito de sua personalidade). Isso reproduz a atitude de Zuckerberg diante da vida e, claro, do próprio Facebook.

Filmado com o orçamento relativamente curto de US$ 50 milhões, “A Rede Social” finca pé como um dos pontos altos da carreira do cineasta e, se exibido em uma antiga sala de grindhouse, faria uma sessão dupla perfeita com “Zodíaco” (2007). Ambos são longas-metragens representam de maneira ultra-detalhista o universo pessoal de homens obsessivos e às voltas com sérios problemas de relacionamento, tanto com as pessoas ao seu redor quanto com o mundo em geral; e ambos têm como pano de fundo eventos verdadeiros que Fincher reconstitui de maneira quase documental, com a ajuda de uma trilha sonora cheia de canções certeiras e de colaboradores tradicionais, como o desenhista de som Ren Klyce, que faz um trabalho discreto e eficiente. Para completar, o final melancólico e devastador encerra a trama com uma nota surda de delicadeza. Filmaço.

– A Rede Social (The Social Network, EUA, 2010)
Direção: David Fincher
Elenco: Jesse Eisenberg, Andrew Garfield, Justin Timberlake, Rooney Mara
Duração: 121 minutos

32 comentários em “Rede Social, A

  1. Rodrigo, lendo sua crítica, me deu vontade de ver. Mas você pode me explicar porque quando eu vi o trailer não tive nenhuma vontade? Pelo trailer, achei o filme bem desinteressante. Por favor, receba o Freud de frente e me explique. =)

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  2. Edu, o trailer me passou a impressão de um drama moralista sobre um adolescente nerd que faz sucesso, fica deslumbrado com mulheres e bebidas, deixa o sucesso subir à cabeça e perde os “verdadeiros” amigos. Ou seja, mais um daqueles filmes supostamente edificantes e bem ao gosto do público médio (republicano) norte-americano. Mas o longa não poderia ser mais diferente disso.

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  3. Pode parecer bizarro, mas jornalistas, do Entertainment Weekly, apostaram na indicação de “A Origem” em diversas categorias, entre elas: filme, direção e ator. Eu aposto efeitos especiais. Já “A Rede Social” é quase certo: filme, diretor, ator, roteiro… o filme foi muito elogiado e David Fincher é muito prestigiado.

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  4. O David Fincher é um dos meus diretores favoritos e concordo que, com este “A Rede Social”, ele realiza mais um grande trabalho. A marca dele, realmente, está na forma como a obra foi filmada.

    O Aaron Sorkin é um cara que sempre se destacou nos roteiros, especialmente em histórias como essa aqui. Ele gosta de figuras interessantes e que possuem uma dualidade de caráter.

    O elenco jovem realmente está muito bom, com destaque pro Eisenberg, pro Garfield e pro Timberlake. Gostei bastante também do Hammer.

    No mais, acho que é um grande filme e que, realmente, faz muito bem este estudo de personagem. O curioso, e não sei se você sentiu isso também, é que a gente meio que termina de assistir ao filme sem saber bem quem é o Zuckerberg. Acho que a pessoa que acabou melhor definindo-o foi a advogada interpretada pela Rashida Jones. Ele não é um completo idiota, mas se esforça tanto em ser um…

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  5. Eu não sei, Kamila, acho que a melhor coisa do filme é mesmo não tentar reduzir o Zuckerberg a uma mera definição. O filme deixa espaço para o espectador fazer isso sozinho. E se há uma definição possível, é a seguinte: em toda a complexidade do que significa ser humano, as pessoas são mesmo indefiníveis. 😉

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  6. Tomara que A Rede Social faça justiça ao esquecido e genial Zodíaco, pouco visto e falado. Fincher merece.
    Só não entendi o espanto dos amigos a Inception. O filme se não é o melhor, é um dos melhores trabalhos de 2010. Discutir a qualidade de Nolan é discutir o sexo dos anjos

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  7. E Rooney Mara ? Ela tem algum destaque no filme?
    Dá pra saber se Lisbeth Salander está em boas mãos?
    Pode parecer besteira, mas desde que soube que ela seria minha querida
    hacker anti-social na versão de Fincher ela é uma das minhas curiosidades nesse filme.

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  8. Um filme escrito pelo cara que criou “The West Wing” e dirigido pelo responsável por “O Clube da Luta”. Aaron Sorkin e David Fincher são Gênios. Simplesmente imperdível!

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  9. Achei o filme bom, mas ainda tento entender o motiva de tanta euforia por parte da crítica em dizer que esse filme é fantástico. Trata-se de um filme correto, sem erros, com uma ótima direção de fotografia e edição soberba. Fincher não faz aqui um de seus melhores trabalhos, apenas um bom filme, que por algum mistério se tornou uma “obra-prima moderna”.

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  10. Mais um filmaço do David Fincher: Jesse eisenberg (que já demonstrava talento em “Adventureland”, que eu adoro!), Andrew Garfield (o novo Homem-Aranha) e, pasme!, Justin Timberlake, brilham nesta curiosa e interessante história regada a muitas festas, mulheres e mentiras.
    “Rede Social” é, ao lado de “A Origem” o melhor filme do ano. Que venha estatuetas douradas para ambos (as indicações do Globo de Ouro saem dia 14/12). Essa briga vai ser feia: David Fincher x Christopher Nolan.
    Outro filme que dizem que é ótimo (e que estou louco para conferir) é “Cisne Negro”, do Darren Aronofsky. Você sabe quando estréia por aqui, Rodrigo?
    Abraços

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  11. Achei um filmaço. Não sei bem por que, mas este filme me lembrou muito o clássico “Todos os Homens do Presidente”. Talvez por ambos retratarem fatos muito recentes que marcaram a cultura americana, mas com tanta elegância e sobriedade que em nehum momento se deixaram levar pelo calor do momento. Agora é esperar sair em DVD para fazer uma sessão dupla…

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  12. Olá, Rodrigo.
    (Desculpa, não consegui acessar a área de contato então to mandando a msg aqui mesmo)
    Vc saberia me dizer quais faculdades boas de cinema existem no Brasil -em particular, no Estado de SP? É que quero muito seguir essa carreira só que estou meio perdido pra escolher.
    Obrigado.

    P.S.: Significativa a crítica, afinal faz já um tempinho que não vemos um filme com 5 estrelas né?

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  13. Lucas, eu não conheço bem graduações em Cinema pelo Brasil. Mas são famosos os cursos da UFF e UFRJ – a primeira dizem que é equilibrada, a segunda mais teórica – e em São Paulo, da USP, que acabou de modernizar seus estúdios e equipamentos. Entre as particulares eu sei que na Anhembi Morumbi tem um pessoal muito legal entre os professores. Mas não me atreveria a sair vaticinando algo a respeito das outras, porque realmente não conheço bem…

    De fato, cinco estrelas anda raro nos filmes atuais.

    Abs

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  14. Retiro tudo o que disse sobre o filme em meu comentário anterior. A Rede Social é um filmaço, ótimas interpretações, elenco afinado, roteiro brilhante, diálogos memoráveis e uma direção coesa. Não é o filme do ano, afinal de contas não é todo dia que se vê algo como A Origem. Faz toda a diferença ver o filme no cinema. David Fincher é sem sombra de dúvidas um dos grandes do cinema atual.

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  15. Rodrigo,
    Com relação ao primeiro comentário (do Edu), há um ponto interessante que tenho observado há anos sobre traillers de filmes. Na minha opinião, eles mais atrapalham do que ajudam na divulgação de um filme, pois temos geralmente uma visão distorcida do filme que tentam nos convencer a assistir.
    Por exemplo, um filme de rítmo meio lento acaba se tornando um filme de “ação”, devido aos cortes rápidos e a curtíssima duração do trailler. Não sei se já escreveram teses sobre esse assunto, mas tenho a impressão que o trailler acaba se tornando uma espécie de curta metragem tosco oriundo de um filme autêntico.
    Pra mim, ler artigos de um crítico de arte como você, por exemplo, sobre determinado filme, é muito mais motivador pra querer ver uma obra cinematográfica. Pois um texto, a contrário de um trailler, não é apelativo nem sensacionalista (visualmente falando). Por outro lado, palavras escritas de uma crítica, tal como qualquer texto literário, instiga infinitamente mais a nossa imaginação. Tal qual aquela velha e ótima regra à hitchcock: o que não é visto, é muito mais importante aos sentidos do que aquilo que é mostrado (à visão).

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  16. Achei o filme sensacional… tudo é perfeito, na medida certa.
    David fincher é um monstro dirigindo e os atores, todos, estão incriveis. É um daqueles filmes em q vc sai com um sorriso enorme estampado no rosto 🙂

    PS: e pra quem tem ainda duvidas do q esse cara vai fazer com a trilogia Millenium, ai esta mais uma prova do q ele eh capaz.

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  17. De cara, eu também não dei muita bola para o filme. Só fui assisti-lo porque eu não queria assistir a Crônicas de Narnia, me dei bem; o filme é excelente! Junto com A Origem e Tropa de Elite 2, são os melhores filmes do ano.

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  18. Nas mãos de um cineasta comum, “A Rede Social” teria virado realmente um drama moralista sobre um nerd adolescente que se deixa envolver pela fama, pela cama e pela grana enquanto fica bilionário. Não é nada disso. O filme virou um drama moral sobre a tal geração Z (diálogos rápidos no cinema tinham nas screwball comedies dos anos 30, mas a velocidade é o meio de comunicação dessa geração). Fincher dosou complexidade e paradoxos nem sempre vistos no atual estado raso das historinhas de Roliúdi.

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  19. Gostei bastante do filme e vi até alguns fazendo comparações entre ele e Cidadão Kane no que tange à personalidade do protagonista e ao poder que este tem nas mãos. Obviamente as comparações não se dão em todos os níveis, mas achei válidas.

    Uma pena que o Oscar tenha deixado de premiar este como melhor filme do ano e o Fincher como melhor diretor. Mas acredito que A Rede Social tem muito mais chances de ser lembrado daqui 3 ou 4 anos que O Discurso do Rei, que deve se tornar apenas mais um ganhador de Oscar esquecido.

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