Origem, A

[rating: 4]

Você sabe o que é hype? Se não, continue lendo. Se sim, vale a pena refrescar a memória. Hype é o termo em inglês que designa algum assunto sobre o qual todo mundo anda falando em certo momento. Um exemplo: o maior hype de 2010, no cinema, foi criado em torno de “A Origem” (Inception, EUA, 2010). Como praticamente todo filme que se torna objeto de hype, a mistura de aventura, sci-fi, thriller e drama romântico assinada por Christopher Nolan carrega consigo virtudes e defeitos do tal fenômeno midiático. Pelo lado bom, atrai aos cinemas gente que normalmente passaria longe de obras que oferecem entretenimento com cérebro. Pelo ruim, causa rejeição automática e má vontade em pessoas que normalmente enxergariam as qualidades criativas de um filme que, longe de ser obra-prima, diverte e faz pensar, combinação anda cada vez mais rara numa Hollywood quase totalmente dominada por corporações industriais. “A Origem” é tão inteligente quanto um filme de US$ 160 milhões pode ser – e essa sentença, propositalmente, deve ser compreendida tanto quanto elogio quanto como crítica.

Uma das piores coisas de um hype da magnitude do experimentado por “A Origem” é que esse fenômeno leva as pessoas a adotarem posicionamentos extremos. Quem gostou começa a usar com freqüência cada vez maior clichês surrados do tipo “melhor filme do ano”, “da década” ou “do século” (os fãs do começaram uma campanha para dar nota 10 em massa à película no IMDb, colocando-a no terceiro posto da tradicional lista dos melhores filmes de todos os tempos do banco de dados). Quem não gostou aumenta os defeitos e atribui o sucesso aos efeitos tardios de um hype anterior, vivido pelo mesmo diretor no rastro da morte do ator Heath Ledger, com “Batman – O Cavaleiro das Trevas” (2008). Vale lembrar que a trajetória desse título nas votações do fórum do IMDb repetiu o mesmíssimo terceiro lugar.

Todo esse fenômeno precisa ser avaliado com cuidado pelos críticos. A atividade, afinal, exige certo distanciamento. Sabemos que a subjetividade é inevitável, e que ninguém é imune aos fenômenos midiáticos, mas eles podem – e devem – ser tratados com tal. É por isso que, diante do quebra-cabeça cuidadosamente orquestrado pela caneta hábil de Nolan (que também assina o roteiro e a produção do filme), é importante se perguntar constantemente, ao longo dos 148 minutos de projeção: quanto da experiência emocional e narrativa que que experimentamos é influenciada, direta ou indiretamente, por tudo aquilo que já lemos ou ouvimos sobre ele?

Isso posto, vamos ao filme. Para começo de conversa, um dos argumentos mais repetidos (tanto por quem gostou da obra quanto por quem a detestou) é de que “A Origem” teria um enredo complicado. Promotores do filme exaltam sua narrativa em camadas, enquanto detratores avaliam que a narrativa se esvai em complexidades inúteis ou se torna simplesmente confusa. Ambos partem do mesmo fenômeno para chegar a diagnósticos opostos. Perdem de vista o cuidado extremo com que Christopher Nolan trata a lógica peculiar que rege o cotidiano dos invasores de sonhos, categoria profissional à qual pertencem praticamente todos os personagens importantes.

Basta analisar o roteiro com atenção para perceber esse cuidado, tão extremo que se torna mesmo um defeito, pois emperra a fluidez narrativa. A rigor, toda a primeira hora de projeção está repleta de diálogos que explicam detalhadamente ao espectador a lógica interna que rege a atividade profissional, dos dilemas éticos às impossibilidades físico-químicas, dos efeitos colaterais às seqüelas psicológicas. Especial atenção é dada à maneira como o tempo e o espaço se comportam dentro dos sonhos (e nos sonhos dentro dos sonhos, e assim por diante). Nolan chegou mesmo a incluir no enredo um personagem que representa o espectador dentro da trama.

Esse personagem é Ariadne (Ellen Page, em atuação entre o mediano e o inexpressivo), a arquiteta novata e talentosa que vai sendo apresentada (ao mesmo tempo em que nós, na platéia) àquele universo extravagante pelos colegas veteranos. A todo momento, os personagens interrompem diálogos ou ações físicas para explicar a ela (e por conseguinte, a nós) detalhes a respeito da elaborada lógica interna que rege a atividade dos invasores de sonhos. O nome da personagem não é mera coincidência – na mitologia grega, Ariadne torna-se esposa do deus Dionísio como conseqüência direta do ato de adormecer, além de ser a mulher que guia Teseu para fora do labirinto do Minotauro.

No filme, ela é a única novata do time de seis invasores de sonhos liderado por Cobb (Leonardo DiCaprio). Este último foi contratado por um milionário japonês (Ken Watanabe) para realizar uma tarefa considerada impossível: ao contrário de extrair um segredo da mente de uma vítima, tarefa comumente realizada pelos invasores de sonhos, o executivo asiático deseja implantar uma idéia na cabeça do filho (Cillian Murphy) de um adversário. O elenco estrelado ainda inclui atores premiados com o Oscar (a francesa Marion Cotillard, o inglês Michael Caine), candidatos a astros (Joseph Gordon-Levitt) e veteranos de habilidade comprovada (Pete Postlethwaite).

Seguindo uma tradição cada vez mais abundante no cinema contemporâneo, “A Origem” se esmera em citações e alusões tanto visuais quanto narrativas (observe, por exemplo, a simetria dos móveis e a paleta de cores do aposento onde pai e filho se encontram no epílogo do filme, e tente não se lembrar da quarta parte do clássico “2001 – Uma Odisséia no Espaço”) e aborda um tema clássico, já explorado por dezenas de cineastas e teóricos do audiovisual: os paralelos entre o mundo dos sonhos e a narrativa cinematográfica. Da mesma forma, Christopher Nolan resgata uma variação pós-moderna desse mesmo tema (o apagamento contínuo das fronteiras entre realidade e ficção), usando as melhores técnicas de efeitos especiais disponíveis. A seqüência em que Cobb explica a lógica do mundo dos sonhos a Ariadne (e aos espectadores), num bistrô em Paris, é um dos melhores momentos do filme, e um eficiente encontro de entretenimento, raciocínio e emoção.

Nolan não explora esse tema com a intensidade ou a sofisticação de um David Cronenberg (“Existenz” ou “Spider”). Os sonhos concebidos por ele pouco têm da qualidade onírica dos verdadeiros sonhos, assemelhando-se muito mais a estágios de um jogo eletrônico (em cada nível, os personagens precisam atingir um objetivo específico) em que a ação é mais física do que emocional. Por outro lado, a clareza narrativa com que o diretor organiza tantas ações paralelas e personagens é admirável, resultando em um terceiro ato que é pura engenharia cinematográfica, uma tour-de-force de montagem. Nolan tem o mérito de criar diversão de qualidade com bom potencial para reflexão – e isso nunca é ruim.

Claro, “A Origem” não chega perto do status de obra-prima. A música onipresente, clichê e intrusiva de Hans Zimmer já desqualificaria o filme para tanto, menos pela construção melódica (com arranjos inspirados em canção de Edith Piaf, que exerce papel importante na trama) e mais pelo exagero no uso, já que ela praticamente não pára durante todo o filme. Isso banaliza o trabalho da equipe de efeitos sonoros, praticamente impossibilitando-a de utilizar os ruídos como fonte de experiências sensoriais (algo que o próprio Nolan já havia feito de forma criativa em “Insônia”, de 2002). Nos diálogos, a combinação de close-ups extremos de rostos com o uso de lentes teleobjetivas, que comprimem espaços, geram uma sensação de falta de ar e transformam freqüentemente os segundos planos em imagens abstratas, ajudando a dar tensão e ritmo à narrativa; mas os planos gerais não têm o senso apurado de composição visual de um Michael Mann, cuja técnica é semelhante e mais sofisticada. De qualquer forma, a obsessão de Nolan com o tema do duplo, expressa muitas vezes em imagens envolvendo espelhos, marca presença aqui. Preste atenção nelas, pois são importantes.

Ademais, ainda que “A Origem” exija que a platéia acompanhe o desenrolar dos acontecimentos com atenção redobrada, a narrativa em camadas não chega a ser nem complexa e nem confusa. Com atenção, é perfeitamente possível acompanhar toda a trama sem se perder, ainda que a importância dos pequenos detalhes (uma marca estilística de Nolan) só possa ser percebida totalmente numa revisão. As reações de promotores e detratores, na verdade, são sintomas do quão inerte e insípida anda a criatividade dos roteiros que pululam nas grandes produções norte-americanas atuais. E isso, no que toca a “A Origem”, é um elogio.

O DVD da Warner traz o filme com boa qualidade de imagem (widescreen anamórfica) e áudio (Dolby Digital 5.1).

– A Origem (Inception, EUA, 2010)
Direção: Christopher Nolan
Elenco: Leonardo DiCaprio, Joseph Gordon-Levitt, Marion Cotillard, Ellen Page, Cillian Murphy
Duração: 148 minutos

70 comentários em “Origem, A

  1. Bom, não que a minha opinião valha algo especial, mas é impressionante como opiniões tão díspares podem ser efetivadas em uma mesma raça de mamífero, separados apenas pela sua suposta bagagem vivencial.
    O cerne da questão é a grande pergunta que um cinéfilo deve se fazer quando está sentado em frente da tela grande, aguardando o seu transporte para o mundo encantado da sétima arte: que diabos eu venho fazer aqui?
    Porque parece que há uma crise de identidade nesse aspecto. Alguém paga para se divertir, e reclama disso. Ou exclama que se divertiria mais vendo outra coisa, que é algo já pré-estabelecido quando sai de casa. É incrível.
    Bom, vi um filme diferente da maioria dos amigos aqui. Devo ter evoluido de outro tipo de macaco, um que é um pouco mais grato pelo que mentes geniais como Nolan, Tarantino, Aronofsky, Fischer, Anderson, DelToro, Miike e Wright andaram me proporcionando. E, obviamente, pela estética “festival: o novo cinema da Ioguslávia”, mais burro…
    Melhor filme do ano, disparado. Ótimo texto, parabéns Rodrigo. Grande abraço!

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  2. O que eu quis dizer, Rodrigo, é que muita gente se utiliza de termos muito mais estilísticos, como a continuidade intensificada, de forma temática. Quanto ao Michael Mann, ele continua insuperável na continuidade intensificada: pratica o estilo da Hollywood atual, de forma tão rigorosa e elegante, quanto o Howard Hawks praticava a continuidade clássica.

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  3. Lamentavelmente um filme limitado a seu próprio universo. Não há nada que me faça lembrar o Nolan excepcional de Amnésia, há apenas artificialismos. Legítimo filme da geração cheeseburger. Nesse link que acompanha o meu nome, tem o que escrevi sobre o filme, Rodrigo, se quiser ler.

    Abs!

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  4. Bom filme. Mas tem melhores. Nolan mesmo tem filmes melhores. Aliás, já reparou como parece que ele, de certa forma, fica às voltas com os mesmos problemas em seus filmes? Amnésia, O Grande Truque, A Origem, todos com personagens confusos entre o que é real, o que é produto de suas mentes, o que é verdade, o que é embuste?

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  5. Pode colocar os dois Batman nessa conta, Palomino. De fato, quase todo grande diretor tem seus temas favoritos, que são sempre retrabalhados nos filmes. Isso não é algo intrinsecamente negativo nem positivo. É apenas uma constatação.

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  6. Revi o filme e percebi alguns detalhes interessantes. Quando o chinês faz a proposta de trabalho para Cobb, ele fala (não exatamente com essas palavras): “aceite o trabalho, ou quer passar o resto da vida envelhecendo e esperando morrer sozinho?”. Essa frase é a mesma usada quando Cobb explica o que é o Limbo e o que acontece com quem vai parar lá. Outro detalhe é que a empresa que persegue Cobb se chama Cobol Engenharia. E no epílogo, quando Cobb reencontra os filhos, eles estão usando roupas muito parecidas com as imagens deles apresentadas durante o filme. Ou seja, são roupas muito parecidas com as que apareciam nos sonhos e memórias de Cobb.

    Nas duas vezes que assisti ao filme, percebi que, no epílogo, o pião (totem de Cobb) de Cobb estava perdendo força e iria parar, mostrando que ele estava acordado. Porém esses detalhes fazem pensar se aquilo foi real ou mais um sonho.

    Quanto à qualidade do filme, gostei do clima de atenção/tensão e fiquei com dúvidas quanto ao aspecto temporal dos sonhos. O 3° sonho iria durar 10 anos (para quem estava dentro do sonho). É dito que a mente processa o tempo mais rápido quanto mais se aprofunda em camadas de sonhos. Mesmo com essa diferença entre tempo no sonho e tempo real, após rever o filme, fica uma inconsistência entre a ação ocorrida no 3° sonho e a ideia de 10 anos de duração que este sonho teria. Não me refiro à ausência de envelhecimento dos personagens para demonstrar essa passagem do tempo, mas sim a algo que aproxime a ação vivida pelos personagens com os 10 anos de duração do sonho.

    No mais, achei um filme empolgante, válido para assistir. O defeito é, como Rodrigo Carreiro disse, a quantidade de informações (e necessárias) do trabalho dos invasores de sonhos que emperram um pouco a narrativa.

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  7. Procurando um comentário inteligente sobre o filme “A Origem”, acabei encontrando essa jóia-rara desse professor Pernambucano na internet no site “Cine Repórter”. Os comentários precisos e em certo grau até ácidos de Rodrigo Carreiro me mostraram exatamente o que estava procurando, minha sugestão: procurem também os vídeo comentários do professor no you tube, vale a pena. A propósito o filme é muito bom também, creio que rivaliza sem perda com Matrix, muito embora em séculos diferentes (XX e XXI), o impacto é o mesmo.

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  8. A Origem é indiscutivelmente o melhor filme de 2010. Nolan é um dos melhores diretores da atualidade e apresenta uma trama bastante interessante, complexa com uma edição fantástica e efeitos especiais e trilha sonora idem. Creio que deverá receber umas 5 estatuetas na Cerimônia do Oscar.

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  9. Legal um crítico falar do Hype em torno de Inception, pois este é sem dúvida o filme com mais Hype que ja vi. Já era o melhor da década antes mesmo de todo mundo ver. Em outro site (omelete), uma crítica negativa gerou mais de 150 comentários de reclamação antes da própria estréia do filme, e depois passou de mil. E os fãs são chatos pra ca*****.

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  10. Assim como o filme essa crítica, carrega consigo “virtudes” e “defeitos”.

    Virtude: mesmo sua opinião divergindo da minha ela e excelentemente construída, e não faz necessariamente que concorde com você, mas sim reflita isso realmente e louvável e não há motivos para prolongamentos nas virtudes, “Agora o bicho vai pegar”.

    Defeito: Sua crítica não aponta os defeitos do filme de forma clara, você apenas se limita a escrever sobre que referências o filme se utilizou na sua construção (Sobre 2001, nolan e fan de kubrick, então e uma homenagem), isso deixa realmente confuso o que você realmente achou de ruim no filme para ele não ser considerado uma obra prima.
    O roteiro de qualquer filme e mais que ordinário ele ter seus furos e clichês, mas se torna irrelevante quando executa de modo que não incomode e bem amarrado e não deixar muitas pontas soltas. E os diálogos estão de maneira acertada, em um filme com uma idéia “Original” e claro que você tem que explicar para o espectador suas teorias e na há excesso expressivo para se incomodar como você diz .
    Mais uma coisa no post 31 você fala o que e pré-determinado para um filme “obra-prima”. Então e isso e só ir à escolinha de roteiros e fazer desse jeito, isso e que e menosprezar a criatividade e capacidade humana de querer inovar, lembrando a origem e um filme de assalto, ou seja, também se utiliza um fator pré-determinado apresentação, recrutamento, planejamento e execução. A minha indignação e você citar isso como se fosse um fator determinante supremo divisor de águas indigno de mudanças.

    E sobre a trilha de hans zimmer (aqui você se expressou sem temor e fez uma crítica negativa direta), nossa você adotou um posicionamento “extremo negativo” sobre ela, e não deu muitas explicações por que de sua melodia não ter te agradado, limitou-se a dizer que ela e “clichê” e “intrusiva”. E comentando sobre o assunto de ser “intrusiva” você tem até certa razão dela atrapalhar de certa forma os efeitos sonoros, mas de longe não chega a ser um inconveniente tão grande, a mesma combina e se encaixa de maneira que beira a perfeição com a cena que se desenrola.

    E pra terminar o fator mais do que irrelevante da sua crítica os Closes. Ta ai um exemplo de caça defeitos apenas se igualando aos “caprichos” de alguns críticos profissionais (impressionante, falou de um fator irrelevante de forma direta, e o resto da crítica foi toda subjetiva e temorosa, e a expressão de falta de ar me arrancou risos), exagerou nessa parte, pareceu ser uma crítica “hype” negativa.

    Apesar de eu ter feito uma “redação” nos defeitos, eu gostei muito da crítica, por ela mostrar que você realmente entende do assunto demonstrando que não é pseduo-intelectual, respeitando a opiniões dos indivíduos que leram as suas idéias, mas esse respeito também e seu maior defeito ( pelo menos nessa crítica em particular), respeito esse que gera essa maneira hesitante e subjetiva de escrever (teclar) . Aliás, vale ressaltar que a parte dos defeitos e maior, pois eu aplico o que faltou para sua crítica ser uma das “melhores” que já li, faltou ousadia. Ousadia de você ser mais expressivo sobre os fatores negativos, sendo de certo modo “agressivo” e contundente, de maneira moderada e clara. xD

    P.S: 1° vez que visito esse site (está nos meus favoritos), gostei muito das suas críticas, continuarei acompanhando. Ressuscitando essa crítica xD

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  11. Que e isso, eu nunca vou ler o que esse cara escreveu!
    O comentário “gigante”, vai ser grande assim lá na casa do Chapéu. xD

    O.B.S: Depois que eu postei caiu a ficha. Xp

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  12. É sem dúvidas um filme muito bom, que conseguiu abordar a temática dos Sonhos Lúcidos tão pouco explorada pela indústria cinematográfica. Quem lê com frequência estes assuntos certamente irá gostar muito do filme, assim como eu.

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