Ensina-me a Viver

[rating:4.5]

Filho da contracultura dos loucos anos 1960 em San Francisco, Hal Ashby foi um cineasta de carreira singular em Hollywood. Embora não esteja entre os autores mais lembrados da geração que mudou a indústria cinematográfica na virada entre aquela década e os anos 1970, Ashby criou um estilo particular e idiossincrático de filmar, que pode ser reconhecido assistindo-se a poucos segundos de qualquer filme seu. A atmosfera de humor melancólico e a predileção por personagens socialmente deslocados, características fundamentais do cinema que construiu, influenciou tantos diretores contemporâneos que seria difícil nomear a lista completa. “Ensina-me a Viver” (Harold and Maude, EUA, 1971) é, ao lado de “Muito Além do Jardim” (1979), o filme mais conhecido dele.

Embora o tema central do longa-metragem – a celebração da vida – seja atemporal e universal, “Ensina-me a Viver” estampa, em cada polegada de celulóide, o clima libertário e incendiário dos anos 1970. Não custa lembrar que a obra foi produzida durante a mais criativa fase do movimento que ficou conhecido depois como Nova Hollywood. Na época, jovens cineastas como Martin Scorsese, Bob Rafelson e Francis Ford Coppola produziam longas-metragens baratos, privilegiando os personagens em detrimento das tramas. Influenciados pelos jovens cineastas franceses (Ashby, particularmente, tem um toque inconfundível de Truffaut), esses diretores foram responsáveis pelo último sopro coletivo de criatividade do cinema norte-americano.

A estratégia de Hal Ashby sempre foi apostar nas idiossincrasias dos personagens e submeter a jornada dos protagonistas às suas características íntimas. No caso específico de “Ensina-me a Viver”, para compreender a revolução causada pelo filme, é fundamental prestar atenção à ousadia de Ashby. Mesmo naquela época libertária, não eram muitos os diretores capazes de filmar o romance entre um rapaz de 20 anos e uma senhora de 79. Se em pleno século XXI uma história dessas causaria choque e repulsa em muita gente de bem, imagine o que as platéias devem ter pensado, em 1971, quando descobriam que o relacionamento deste casal inusitado não era platônico, mas carnal?

Esta pode ter sido a principal razão do fracasso comercial de “Ensina-me a Viver”. Felizmente, o filme ganhou fartos elogios da crítica, o que lhe permitiu uma sobrevida de alguns meses nas salas de cinema. Esta sobrevida foi suficiente para criar, em torno do longa, uma forte aura cult, que se multiplicaria nos anos a seguir. O resultado é que, ao longo de duas décadas, “Ensina-me a Viver” foi se tornando referência crucial para dramas cômicos de humor negro, angariando um lugar de destaque em muitas listas de grandes comédias. Sem este filme, é pouco provável que cineastas indie de talento, como Wes Anderson (“Os Excêntricos Tenenbaums”), houvessem florescido.

“Ensina-me a Viver” documenta o encontro, como insiste o título original, entre Harold (Bud Cort) e Maude (Ruth Gordon). Rico, solitário e mórbido, o rapaz de 20 anos insiste em se afastar cada vez mais da vida. Tem uma fascinação bizarra em simular cenas de suicídio, e freqüenta diariamente cemitérios, onde gosta de observar funerais de estranhos. Harold tem um carro preto, só se veste de negro e parece pronto para cair morto a qualquer momento. O filme não vai fundo nas razões para este comportamento, mas sugere sem muita sutileza que elas podem estar na mãe autoritária (Vivian Pickles) do rapaz. De qualquer forma, ele parece cada vez mais desconectado da realidade.

É quando conhece Maude. Falante e cheia de energia, a sobrevivente de um campo de concentração é pura vontade de aproveitar a vida. Exibe uma inconseqüência quase juvenil, tem como hobby roubar carros para passear, adora flores coloridas e acredita que o ser humano deve viver intensamente cada dia, como se fosse o último. Todo o fascínio gerado pelo filme nasce, na verdade, de uma estratégia narrativa simples: Hal Ashby inverte os papéis que se espera dessas duas pessoas, fazendo nascer entre eles uma amizade genuína que Harold, tão solitário, não demora a confundir com amor.

O longa-metragem é uma seqüência quase ininterrupta de cenas maravilhosas, desde a abertura (em que Harold prepara meticulosamente um enforcamento para si próprio, e a mãe conversa displicentemente ao telefone enquanto o filho grasna, pendurado na corda) até o encerramento, ao mesmo tempo melancólico e alto astral. Embalados pela ótima trilha folk acústica de Cat Stevens, há momentos cômicos brilhantes, quase todos protagonizados por Ruth Gordon, que oferece aqui uma performance tão intensa quanto a que havia magnetizado a platéia em “O Bebê de Rosemary” (1969), só que em outro espectro da gama de sensações – se no filme de Roman Polanski ela parecia sinistra, aqui é a eletricidade em pessoa.

O DVD da Paramount é simples e sem extras. A qualidade de imagem (widescreen 1.85:1 anamórfica) e áudio (Dolby Digital 5.1) é boa.

– Ensina-me a Viver (Harold and Maude, EUA, 1971)
Direção: Hal Ashby
Elenco: Ruth Gordon, Bud Cort, Vivian Pickles, Cyril Cusack
Duração: 91 minutos

5 comentários em “Ensina-me a Viver

  1. Um arma de marketing bem idiota, diga-se de passagem, pois gera uma discussão mais idiota ainda, claro que estou falando de “A Origem”, acho que a questão se era ou não era um sonho foi bastante previsível. Pelo menos da minha parte ao assistir o filme, tive o pensamento na hora que o final iria ficar em aberto mesmo, com certeza não fui o único.

    Não vejo muito problema em finais “abertos”, na literatura isso já é comum há bastante tempo. Bukowski, por exemplo, fazia isso quase sempre.

    Parabéns pelo artigo, muito bom!

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  2. Com uma mãe daquela, qualquer adolescente não só teria tentado se matar como teria conseguido se suicidar.
    Um garoto sem qualquer experiência/conhecimento da vida, cheio de possibilidades e recursos encontra uma velha, que sabe tudo da vida pelo que já passou poucas e boas sendo uma judia advinda de campos de concentração e pelas batalhas que enfrentou, sem muita possibilidades materiais, quase nenhum recurso, mas trangressora a não mais poder.
    Desafia a tudo e a todos. De policial rodoviário ao padre discípulo de Pio XII , do tio militar (Nixon) ao psicólogo freudiano.
    Só a trilha sonora do Cat Stevens, em começo de carreira, já vale o filme.

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  3. Como de praxe, ótimo texto Rodrigo. Acabei de ver o filme, achei razoável. Aquele razoável que vale ver.
    É um filme estranho, com boas atuações dos atores principais bem como da atriz que faz a mãe do garoto. O diretor e o roteiro tem muito mérito por fazer aquele romance “impossível” parecer algo natural.
    Valeu ver, apesar de não gostar tanto no todo. O desfecho me agradou e o filme me deixou reflexivo após o término.

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  4. Sem dúvida é um dos meus filmes cult favoritos! Melancólico, bonito, inesquecível. Recomendo pra quem gostaria de ter uma experiância estranhamente poética. 🙂

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