Ilha do Medo

[rating: 4]

Uma olhada retrospectiva à carreira de Martin Scorsese comprova que os melhores filmes do diretor norte-americano surgiram como trabalhos de encomenda. Mais do que criar histórias originais, a verdadeira habilidade de Scorsese sempre esteve em dar forma e conteúdo a histórias inventadas por outras pessoas, injetando nelas elementos que funcionaram como assinaturas estilísticas. “Ilha do Medo” (Shutter Island, EUA, 2010) segue esta trilha e alcança um resultado muito bom, embora não deixe de ser um filme menor dentro de uma carreira que inclui obras-primas do naipe de “Taxi Driver”, “Touro Indomável”, “Caminhos Perigosos” e “Os Bons Companheiros”.

É provável que a origem do interesse de Scorsese no projeto esteja na época em que o filme é ambientado: os anos 1950, com ecos do militarismo da II Guerra Mundial misturando-se à atmosfera de paranóia e perseguição política vivida durante a “caça aos comunistas” promovida pelo senador Joseph McCarthy. Foram os filmes desta época, bem como outros ambientados nela, que despertaram o interesse obsessivo de Scorsese pelo cinema, levando-o a tornar-se cineasta. Não é difícil ver em “Ilha do Medo” a influência de Samuel Fuller e seu furioso “Paixões que Alucinam”.

Scorsese aplica ao filme sua tradicional abordagem requintada. A boa fotografia de Robert Richardson – interiores repletos de sombras e cantos escuros, exteriores tomados pela neblina e pela chuva cada vez mais intensos – e a excelente direção de arte de Dante Ferreti, ambos colaboradores tarimbados e parceiros de longa data do diretor, auxiliam Scorsese a enfatizar a atmosfera sombria que espelha, em termos puramente visuais, a alma atormentada do protagonista, o detetive federal Teddy Daniels (Leonardo de Caprio).

Teddy lidera a estranha investigação sobre o desaparecimento impossível de uma das pacientes de uma misteriosa instituição para doentes mentais localizada numa ilha cheia de penhascos e cavernas. A tal paciente, Rachel (Emily Mortimer), supostamente não poderia ter deixado sua cela, trancada por fora, e muitos menos deixado a ilha, fortemente vigiada por guardas e enfermeiros, todos extremamente obedientes ao sinistro diretor John Cawley (Ben Kingsley). Mas o fato é que ela conseguiu escapar de algum modo, e cabe a Teddy e ao novo parceiro Chuck (Mark Ruffalo) a tarefa de desvendar o mistério.

Do ponto de vista técnico, Scorsese faz um ótimo trabalho com o roteiro de Laeta Kalogridis. O clima de mistério e a atmosfera claustrofóbica estão presentes desde a primeira tomada – um barco abrindo caminho lentamente em meio a uma forte neblina – e o público, observando o desenrolar da trama sempre do ponto de vista de Teddy, pressente o mesmo que ele: há algo de profundamente errado com as pessoas da ilha. Tanto detentos quanto médicos e enfermeiros parecem estar ocultando algo. Mas o que seria esse algo? Que tipo de experiência poderia estar ocorrendo naquele lugar?

Teddy é, ele próprio, um homem atormentado por pesadelos e visões do passado. Ele atuou como combatente na guerra e esteve presente na liberação do campo de concentração de Dachau, Alemanha (nesse ponto a direção de arte comete um erro histórico curioso, já que as cercas, portões e prédios exibidos são uma reconstituição perfeita de outro campo, mais precisamente Auschwitz, e qualquer pessoa que já tenha visitado os dois lugares perceberá o problema, ainda que ele não seja relevante para a narrativa). Além disso, dois anos antes teve a mulher (Michelle Williams) morta num incêndio criminoso, cujo autor inclusive está preso na mesma ilha. Talvez por causa da influência do clima soturno do lugar, os pesadelos do detetive começam a se tornar mais freqüentes, com o enredo levando a um clímax surpreendente que pede uma revisão minuciosa.

Quarta parceria entre Scorsese e o astro Leonardo DiCaprio, “Ilha do Medo” conta com um elenco luxuoso (Max Von Sydow, Elias Koteas, Ted Levine e Jack Earle Haley fazem papéis pequenos, de uma ou duas cenas) e tem como destaque também uma trilha sonora pesada e dissonante, uma coleção de experiências atonais e concretistas compiladas por Robbie Robertson, e que inclui composições de Penderecki, Ligeti e John Cage. Embora pareça excessiva e bombástica demais em alguns trechos, a dissonância das composições enfatiza o clima de estranheza do lugar e é complementada perfeitamente por um desenho de som cuidadoso e inteligente (atente para o ruído de uma furadeira elétrica que volta e meia surge em meio a diálogos ou seqüências de flashback; o equipamento nunca aparece na imagem, mas funciona como uma pista essencial para a revelação final sobre a natureza do mistério).

De fato, “Ilha do Medo” é um digno representante de uma linhagem cada vez mais popular de filmes comerciais, e que consistem em narrativas subjetivas, cuja fronteira entre imaginação e realidade é constantemente desafiada. No entanto, apesar de ser um filme inteligente, visualmente brilhante, cheio de bons atores e sonorizado de forma criativa, o longa-metragem nunca chega perto de igualar, em termos de energia e empatia, os melhores trabalhos de Scorsese. O que falta não é qualidade, mas vibração. Nesse ponto, embora a homenagem a Samuel Fuller seja comovente, “Ilha do Medo” fica longe de atingir o turbilhão de emoções selvagens dos melhores filmes deste inspirador mais obscuro de um dos grandes mestres do cinema contemporâneo.

O DVD lançado pela Paramount, simples, não apresenta extras. O filme aparece com boa qualidade de imagem (widescreen anamórfica) e áudio (Dolby Digital 5.1).

– Ilha do Medo (Shutter Island, EUA, 2010)
Direção: Martin Scorsese
Elenco: Leonardo DiCaprio, Ben Kingsley, Mark Ruffalo, Michelle Williams
Duração: 138 minutos

35 comentários em “Ilha do Medo

  1. Vi ontem esse grande filme. Não é para todos os gostos, mas é para quem gosta de algo muito bem feito. Destaque para a trilha sonora impactante. Mais uma atuação monstruoda de Di Caprio e todo o elenco gigantesco de coadjuvantes. Apenas como ressalva, achei “

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  2. opa houve um erro
    continuando

    Apenas como ressalva, achei “Ilha do Medo” absolutamente previsível do começo ao fim. Matei a charada com 15 min de exibição, e depois só fui encaixando as peças do quebra cabeça. Mas mesmo assim, Scorcese continua impecável!
    parabéns pela crítica Rodrigo, mais uma brilhante!

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  3. Não matei a charada desde o começo, mas a solução final é pífia. Como bem dito pelo Rodrigo na crítica, falta energia ao filme. Achei absurdamente desinteressante para um filme do Scorsese.

    Aliás, não parece um filme do Scorsese…

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  4. Eu assisti ao filme e hoje e concordo contigo que a parte técnica de “Ilha do Medo” é um primor, especialmente a fotografia, a direção de arte, a edição de som e a trilha sonora. Gostei muito também das performances, especialmente a do Leonardo di Caprio. Mas, achei o roteiro um tanto previsível…

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  5. Antonio
    apenas uma sugestão
    quando for fazer esse tipo de pergunta, coloque Spoilers, indicando que a sua pergunta pode revelar algo sobre a trama do filme
    tem muita gente que lê a crítica e os comentários para saber da repercussão sobre o filme

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  6. Se não se pode comparar às obras-primas do diretor, tudo bem, mas comparando com Gangues de Nova York e O Aviador, prefiro este.
    Ainda bem que não vi o trailer, aliás não gosto de ver trailers…. as vezes tiram as surpresas do filme, as vezes criam expectativas equivocadas.

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  7. Adorei o filme. Achei uma mistura de Arquixo X (principalmente no início, só faltou chamar Mulder e Scully pra resolver o caso)), da HQ Asilo Arkhan de Grant Morrison e na fotografia e em determinadas cenas puro Hitchcock e um pouco de Kubrick em algumas partes e planos. Filmaço. Me senti vendo um Hitchcock moderno em determinados momentos.
    Defeitos: achei muito explicadinho, muito mastigado, podiam deixar o espectador refletir mais. E realmente é previsivel, depois de uns 40min suspeitei do final e depois de1h10min mais ou menos já tinha certeza (quero ler o livros pois li Sobre Meninos e Lobos e achei o escritor muito bom, melhor que o filme -que é ótimo – nesse caso).
    Mas sinceramente não acho que fica devendo a muitos filmes do Scorsese (claro que Taxi, Touro e Bons Companheiros são obras-primas eternas, esses nem se pode comparar com nada) como, por exemplo Cabo do Medo que não acho lá essas coisas (esse Ilha do Medo é muuuuuito melhor). Pra mim o Scorsese continua em alta e de certa forma inovando a si mesmo no fato de tentar gêneros novos e não se repetir….e olha que acho que muita gente que não gostou vai gostar mais daqui a uns anos (no meu caso quando vi Taxi Driver gostei e só – mas sempre ficava com vontade de ver de novo – , depois comecei a idolatrar o filme).
    E por último Rodrigo, acho que o último filme realmente bom com “final surpresa” e que quase ninguém matou a charada foi mesmo O Sexto Sentido.

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  8. Ah e só pra completar: também dá de 10 a zero no Vivendo no Limite o pior filme dos Scorsese que já vi (embora tenha algumas poucas qualidades). Mas pq ficamos comparando um filme com outros e não analisamos a obra em si? Resposta: porque o diretor é o Scorsese, quem chega a esse patamar tem que aturar comprações com si mesmo rsrsrsr.

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  9. Achei o roteiro e a produção de extremo bom gosto e inteligência. Você vive o filme todo com a perspectiva da personagem… Perfeita comparação metafórica com a realidade. Brilhante em mínimos detalhes que só podem ser inteiramente analisados se assistidos mais de uma vez.

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  10. tem muita coisa incrível nesse filme. fui sem esperar nada e saí tonta.

    não achei que faltou energia, não.
    repensando o roteiro… é previsível sim, mas a história foi contada de maneira a não deixar a desejar… acho que você já pode até esperar boa parte da trama, mas ainda existem muitos detalhes inesperados, que fazem muita diferença.

    merece ressalva a cena de uma das entrevistas (interrogatório…) de DiCaprio com uma paciente, quando ela pede um copo d’água. no plano ele aparece, no contraplano ele some. achei uma sacada genial.
    =)

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  11. Ao contrário de alguns usuários deste site, achei o filme maravilhoso. Tanto dum ponto de vista técnico como no que diz respeito ao enredo e ás actuações. Como amante de cinema, alimento uma fantasia de qualquer dia vir a realizar eu próprio um filme e, sempre que me imagino a fazê-lo, é um thriller psicológico deste género. Acredito, portanto, que realizadores conceituados como Scorcese e Kubrick cheguem a uma certa altura das suas esplenderosas carreiras e ponham a hipótese de fazer algum totalmente dedicado ao seu virtuosismo técnico, onde possam criar um ambiente apenas possível na tela. Mencionei Kubrick e não foi por acaso. Acho que este filme está para o Scorcese como está o Shining para o Kubrick e, inclusive, ao mesmo nível. Brilhante, mesmo!

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  12. dá-lhe, scorsese! filmaço! também achei legal a cena do copo, a mulher segurando o nada. só não reparei na marca do copo. mas isso é uma dica importante, rodrigo? em que sentido? sabe, todos dizem que na metade do filme já dá pra prever o final, eu me sinto um burro, porque o filme acabou e eu ainda acho o final ambíguo, talvez porque eu tenha comprado a ideia do di caprio e não a dos médicos.

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  13. Eu gostei. Pode até ser um filme menor do Scorcese, mas melhor que muita coisa por ae…
    E aquela cena do farol?
    Na primeira aparição ele parece estar no lá no alto da colina, intrasponível, no entanto, nas cenas seguintes ele aparece ao nível do mar, lá em baixo do penhasco… loucura? eheh

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  14. Acabei de voltar do cinema. Achei o fime muito bom. Podemos até falar de previsibilidade… mas o filme é super bem amarrado.
    Di Caprio continua a me impressionar nas atuações… o cara é um ótimo ator.
    Scorcese é fantástico… sempre inova.
    Vale à pena conferir. Há muitos contrapontos entre loucura e sanidade… bem sacado.
    Rodrigo, ótima crítica.

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  15. O filme é legal…podem assistir…O final não é tão previsível não..só pra quem tem muita bagagem em filmes do gênero…Trilha sonora impecável..sufoca totalmente o telespectador..,muito boa..vale a pena..E o di cáprio…sou obrigado a admitir que o cara foi nota 10…Abraços..

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  16. depois de aprender contigo o que é fotografia, eu apurei e li para poder dizer que a fotografia do filme é linda, maravilhosa!!
    mas no mais, concordo com danilo que em 15 minutos de filme matei o mistério, mas seria muito ilógico se assim nao o fosse. mas gostei bastante, tem elementos que conseguem fazer voce se grudar na cadeira ate o final. e nao prende pelo horror, sustos e sangue, mas pelo mistério em si.

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  17. Gente, editei alguns dos comentários que entregavam o final do filme. Por favor, quando postarem comentários, lembrem-se de que muitas das pessoas que lerão a crítica no futuro ainda não terão visto o filme!

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  18. Rodrigo,
    Tive a oportunidade de ver esses dias a revista em quadrinhos na qual se baseou o filme.
    É praticamente o storyboard!! (pelo menos das duas primeiras cenas, que foi o que eu vi)
    Nesse sentido, voce acha q o papel de direçao de Scorsese se faz menos importante por ja se ter praticamente os pontos de vista definidos ou ele ainda é totalmente louvavel se se for levado em consideração a encenação, direção dos atores, etc… ?
    =)

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  19. Na minha opinião, absolutamente não. A tarefa do diretor não é necessariamente criar ele mesmo as soluções de representação, mas reconhecer a colaboração dos outros membros da equipe. Cabe lembrar que o diretor é como um maestro: não toca nenhum instrumento, mas a orquestra só soa afinada se ele souber o que está fazendo.

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  20. Um brilhante filme de Scorsese, eu relutei para assisti-lo, pois alguma coisa me dizia que este filme seria um fracasso.Engano meu.
    Um filme surpreendente cheio de mudanças e armadilhas, talvez para nos confundir.Um dos melhores trabalhos de Leonardo DiCaprio!

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  21. Tenho não, Robson. Mas desconfio que ficará mesmo nesse DVD simples. Baseio-me em dois fatores: (1) a Warner não tem lançado os filmes recentes de Scorsese em edição dupla, vide “Os Infiltrados”, que chegou a ser anunciado mas jamais viu a luz do dia; (2) o mercado home video mudou demais desde a chegada do Blu-Ray, e as distribuidoras começam a seguir a prática de lançar os extras mais interessantes apenas nesse formato, como forma indireta de forçar o consumidor a migrar pra ele.

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  22. Rodrigo.
    Iha do Medo me surpeendeu. Nao tava levando o diretor Martin Scorsese mais a sério. Seus ultimos filmes Gangues de N.Y, O Aviador e Os Infiltrados foram fracos. Nem de longe lembram o homem que fez Alice Nao Mora Mais Aqui. Em nenhum momento saquei o lance que muitos viram. Até parece que esse pessoal vai ao cinema pra procurar descobrir esses lances. A historia é muito criativa e intelignte. A música cai como uma luva para esse suspense e lhe da um clima de terror. Sensacional e original. Uma das melhores que vi ultimamente. Parabens pela tua critica sobre o filme. É a melhor de todas que li sobre esse filme.
    Um Abraço
    Sander

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  23. Bah! Me lembrou muuuuito “O mistério das duas irmãs”, mais bobinho, mas segue, de leve, a mesma idéia. Aliás o que não falta é filme parecido, né?
    Não matei a charada até que ela me fosse desvendada.
    A menos que o roteiro seja muito fraco e “sem querer” eu descubra, gosto mesmo é de me entregar e ser surpreendida. Pena que os dois primeiros atos são tão maçantes =P
    No mais, adorei o final. A última frase do DiCaprio, mais precisamente. Realmente inteligente.

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  24. Rodrigo, se você me permitir, vou roubar esse texto para ler com meus alunos em sala de aula. Vamos fazer um exercício com eles sobre produção de resenhas. Espero que não se importe.

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