Anticristo

[rating: 3]

Quem segue mais ou menos de perto a carreira singular de Lars Von Trier sabe que o diretor dinamarquês gosta muito de cinema popular. Uma olhada atenta dirigida aos filmes dele revela, por exemplo, elementos de diversos gêneros fílmicos distintos: musical (“Dançando no Escuro”), melodrama (“Ondas do Destino”), filme de gângster (“Dogville”). Em entrevistas, Von Trier já havia expressado desejo de realizar pelo menos um título de horror e um pornô legítimo. “Anticristo” (Antichrist, Dinamarca/Alemanha, 2009), representa, de certa forma, a convergência desses desejos em um único produto.

As impressões digitais idiossincráticas do dinamarquês estão espalhadas por todo o longa-metragem, realizado durante um período de depressão clínica que ele enfrentou (entre 2005 e 2009). O filme foi lançado sob intensa polêmica em Cannes 2009, recebendo vaias e duras críticas durante as projeções para a imprensa especializada. Embora a atriz francesa Charlotte Gainsbourg tenha ganho o prêmio de melhor atriz no festival, o filme em si acabou agraciado com um inusitado anti-prêmio, atribuído pelo júri, pela suposta misoginia declarada do diretor. Polêmico? Claro. Mas, levando em consideração o tipo de recepção dado às obras de Lars Von Trier, pura rotina.

É um filme duro, capaz de provocar pesadelos em muita gente, mas não pelas razões que se espera ao interpretar o título. Há pouco (ou nada) de sobrenatural em “Anticristo”. Ou melhor, existe o vislumbre de uma visão religiosa meio pagã – certamente fruto da mente do diretor, e também roteirista – a respeito da complexa relação entre o homem e a natureza, perfeitamente expressa na frase-chave do filme, proferida em certo momento pelo personagem de Gainsbourg: “A natureza é a igreja de Satã”. Mas “Anticristo” não tem nenhuma relação com filme de horror bíblico estilo “A Profecia” (1976).

A estrutura narrativa, à moda de “Dogville”, é dividida em prólogo, quatro capítulos e epílogo. As imagens perturbadoras começam já na abertura (espécie de refilmagem-citação da abertura de “Inverno de Sangue em Veneza”, do australiano Nicolas Roeg), filmada em preto-e-branco, que mostram o bebê de um casal (Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg) saindo do berço e caindo da janela do prédio para a morte, enquanto a dupla faz sexo furiosamente no chuveiro. A câmera lenta, os planos-detalhes cuidadosamente construídos, a ausência de som ambiente, a música sacra contrastando com uma tomada de penetração explícita, tudo isso contribui para a sensação de estranhamento que poucos diretores além de Von Trier conseguem criar.

O trauma deixa a mãe em estado de choque. Para tentar superá-lo, o casal decide se isolar numa cabana dentro de uma floresta, onde ele – um terapeuta – pode tratá-la sem os inconvenientes do convívio social. Aí… bom, a partir desse ponto o filme passa a recusar a noção de cinema narrativo clássico para explorar imagens perturbadoras que relacionam natureza, sexo e violência, tudo perpassado por um conceito distorcido de maternidade que só poderia mesmo ter saído da mente demente de um Lars Von Trier. Há fortíssimas imagens de violência sexual, efeitos digitais utilizados com discrição e uma paleta de cores frias (verde, azul, cinza) que contribui para amplificar a sensação de desconforto.

Uma chave possível para “entrar” no filme está, talvez, na abordagem original que o diretor dinamarquês costuma dar aos códigos do cinema de gênero. Nesse tipo de filme, a platéia costuma esperar a recorrência de certos elementos formais e/ou narrativos. No caso do filme de horror, por exemplo, pesadelos, visões de monstros e efeitos sonoros irreais (ruídos de baixa freqüência, normalmente) que antecipem os momentos de violência. Lars Von Trier usa tudo isso, mas de maneira que distorce deliberadamente as expectativas do público.

Há monstros em “Anticristo”, mas eles aparecem e desaparecem repentinamente, sem se envolver na ação dramática. Há uma sensação permanente de pesadelo (e, a partir de certo ponto, a noção muito psicanalítica de que estamos talvez num outro plano de realidade, ou dentro da psique de algum personagem… ou de ambos), mas essa tensão não se dissipa porque os personagens não “acordam”. Os passeios pela floresta são freqüentemente sonorizados com ruídos e barulhos anti-naturais que não se concretizam em sustos.

A mesma abordagem vale para a codificação do filme pornográfico, que aparece na tela filtrada pela visão idiossincrática do diretor – e ela inclui cenas de sexo cada vez menos sensuais e doloridas, até um ponto em que o sexo se funde visualmente à violência (física e psicológica), à maneira de um David Cronenberg. Em outras palavras, Lars Von trier joga com os códigos do cinema de gênero, mas os usa de maneira deliberadamente distorcida, até mesmo críptica. Essa abordagem é o equivalente cinematográfico de mostrar a uma criança (nós, o público), uma barra de chocolate, entregá-la nas nossas mãos, só para descobrirmos que dentro da embalagem existe somente uma cocada de sal. Expectativas não saciadas geram frustração; frustração gera decepção. Mas isso não quer dizer que “Anticristo” seja necessariamente um filme ruim. Ele é apenas uma experiência amarga que alguns de nós talvez não queiram enfrentar.

O filme foi lançado no Brasil em DVD pela California Filmes. A edição é simples e não contém extras. O filme tem boa qualidade de imagem (widescreen anamórfica) e áudio (Dolby Digital 5.1).

– Anticristo (Antichrist, Dinamarca, 2009)
Direção: Lars Von Trier
Elenco: Willem Dafoe, Charlotte Gainsbourg
Duração: 104 minutos

26 comentários em “Anticristo

  1. A não ser que eu tenha entendido o filme errado… é Charlotte Gainsbourg quem diz que “a natureza é a igreja de satanás”. Quando o menino cai da janela, os pais estavam fazendo amor no sofá (começaram no chuveiro, passaram pela máquina de lavar e, no momento da tragédia, estavam na sala).

    Bom, achei o filme interessante. É bom pra quem gosta de ver coisas diferentes.

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  2. O que me irrita no Lars Von Trier é que os filmes dele dão a impressão de serem plásticos demais, não sei explicar bem, mas como se fosse intencional demais. Sempre quando assisto a algum filme dele me vem a cabeça a imagem do diretor dizendo a si próprio: “estou fazendo uma obra-prima”. Falta espontaneidade no cinema dele. Coisa que David Lynch – só um exemplo – mesmo não sendo um cineasta fácil, possui!

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  3. Achei deverás interessante que esse filme tenha estreado no Multiplex, para minha surpresa poucas pessoas abandonaram a seção. Quanto ao filme, este gera um agônia genuina, o uso da câmera super-lenta foi perfeito, o final do filme de certa forma inesperado. Esse é o cinema de Von Trier, filmes para gerar incômodo, cada repercussão furiosa contra o filme deve ser uma espécie de prêmio para Trier.

    As cenas de desespero e ansiedade da mulher são espetaculares, principalmente pra quem já viveu de perto ou presenciou uma situação de depressão ou similar.

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  4. O filme realmente é pertubador, mostra a natureza humuna como ela realmente é…
    Todo ser humano ao ser colocado contra a parede por alguma coisa que o desconforta, vira um monstro e é capaz de cometer atos horríveis.
    Pelos desejos carnais, muitas vezes deixamos de lado a razão para viveer so o momento de prazer… mesmo o filme sendo de difícil entendimento para alguns, é um filme que deve ser assistido para que se tenha uma reflexão do realmente somos capaz de fazer….

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  5. Olá, Rodrigo. Admito que os filmes de Von Trier não são para todos os gostos, mas acho que com esse Anticristo, ele foi longe demais. Primeiro, o filme não se define, transita em entre vários gêneros: horror, terror, suspense psicológico, drama alegórico, mas no fim das contas, não é nada disso. Segundo, vc pode me explicar que final é aquele? Sinceramente, não entendi, mas acho que da maneira como concluiu Anticristo, Von Trier me deu impressão que sua intenção foi realizar um filme misógeno, afinal o tempo todo um dos protagonista diz que a natureza é a igreja de Satã. Natureza está associada a mulher (…). Outro ponto que me incomodou muito, foi a violência. Certas cenas (…), além de mau-gosto, me pareceram desnecessárias dentro da história. Por falar em história, que é um fiapo que ele estica, ele afirma que Anticristo foi uma tentativa de realizar um conto gótico. De gótico, o filme tem apenas ambientação na floresta, e algumas cenas de alucinação, que me pareceram forçadas. Em suma, Anticristo para mim foi uma decepção, pois Von Trier esqueceu uma regra básica: na maioria das vezes, apenas a sutileza já é o suficiente para criar uma atmosfera de medo efiente, e deixa o expectador arrepiado. Prova disso, é outro no qual também pode se encontrar a figura mítica do anti-cristo:o clássico O Bebê de Rosemary de Roman Polanski. Em suma, não entendo por que esse filme tem recebido tantos elogios de seu colegas, para mim é um dos piores de Von Trier, e só não tão ruim quanto Os Idiotas, um filme que faz jus ao título. Abraço.

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  6. Engraçada essa coisa das interpretações que cada um fazemos sobre uma obra. Ao contrário do Alessandro, e para minha surpresa absoluta, gostei muito do filme ! Vi, inclusive, na Fundaj, onde o som potencializa o clima sufocante de algumas passagens. Acho que o filme é difícil já pelo que ele se propõe a discutir – o luto. Mas se o Lars Von Trier pesa a mão em certos momentos, ele não me pareceu fazê-lo gratuitamente, outra crítica recorrente que tenho visto à obra. Acho que ele radicaliza nas possibilidades do humano, ainda que seja para apontar seu lado mais irracional e violento. Não vejo demérito algum nisso. Ao contrário. Acho até digno de louvor ele, mais uma vez, questionar mitos e essa tal de “natureza humana”. Ao mesmo tempo em que a personagem feminina é a mais fragilizada e a que mais sofre, é através dela que ele dá uma estocada no mito do amor materno.
    Enfim, é difícil mas é cinema de ótima qualidade. E achei até que ele abriu uma concessão no epílogo. Diferentemente do pessimismo absoluto de outros filmes seus, pra mim o final aponta para um viés esperançoso do caminhar (capenga) humano. É isso.
    Abrçs, Rodrigo!

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  7. Ainda não entendo pq tod essa polêmica em torno do filme: gente saindo revoltada da sala, outras vomintando… Gostei do filme pelo fato de mostrar a solidão do personagem, o vazio que o ser humano sente após uma perda de uma pessoa tão querida. Rodrigo, vc não acha q a violência neste filme foi gratuita? E aquele epílogo? Podes falar sobre ele?

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  8. “Anticristo” é um filme de imagens complexas, introspectivas e difíceis! Eu acho interessante a maneira como Lars Von Trier colocou seus personagens, num jogo psicológico, com a mulher achando que usar de seu corpo é a solução pra tudo e o homem querendo penetrar (desculpa pelo trocadilho) na mente da esposa…. É um filme difícil! Não sei se gosto ou não dele!

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  9. Essa questão da suposta gratuidade da violência é muito subjetiva. A mim parece que há uma razão para ela existir. Quanto ao epílogo, é uma obra aberta a interpretações… mas concordo com Andrea, senti ali um certo otimismo meio raro na obra do Von Trier.

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  10. Assisti o filme 2 vezes, pq não entendia como tinha gente dizendo que ele é “uma obra prima”. Obra prima ??
    Não sei dizer, mas até o mais sádico dos seres se repugnaria ao ver as ‘senas’ (à la Sasha) ….

    Fui !

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  11. Anticristo do Von Trier é um das coisas mais bizarras que eu já vi em minha vida. Não recomendo, mas gostei muito.
    Não senti nenhum otimismo ao final e sim um pessimismo e a afirmação que a humanidade caminha junto com os 3 mendingos.
    Eu gostei muito.

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  12. Engraçado, Anticristo é um filme de culpa e ninguem comentou isso. Gente, tudo aquilo é culpa! A mutilação é uma auto-condenação.

    Vi o filme agora. Ainda estou digerindo… mas eu gostei muito.

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  13. Achei este filme bastante interessante, pela atuação do Dafoe e muito mais pela forma que a senhora Charlotte Gainsbourg desempenhou o seu papel. Realidade destrutiva após o extermínio da base familiar. Ótimas cenas, filme com uma base de cores sólidas e uniforme. Genial.
    Com certeza vale uma experiência esta película.

    J.

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  14. Rodrigo, realmente Anticristo é um filme pesado, lento, tenso, mas é um bom filme tanto que faz a gente pensar. Mas há alguns enfoques que não foram comentados, relacionados com o diabo (satã) e possesão. Antes da morte do filho (quando estavam só os dois na cabana), Ela torturava o filho colocando as botas na criança com os pés trocados. Em outra cena a criança está brincando com um pedaço de lenha e uma furadeira manual que depois será usada por Ela para torturar Ele. Ela em uma rápida cena parece estar realmente possuída. O estudo que ela fazia sobre a Inquisição alterou o seu estado mental antes mesmo de voltar para casa, fez Ela ficar possuída, etc ? A morte do filho não foi a causa da depressão, mas a alteração psíquica que ela sofreu durante os seus estudos na cabana fez com ela preferisse terminar de transar com o marido do que salvar o filho, o qual Ela viu subindo na mesa e janela. É um filme que tem muitas faces …
    Assiti em DVD e duas vezes em Blu-ray. Mas é uma VERGONHA a CALIFÓRNIA FILMES ter colocado este Blu-ray nas locadoras somente com som em estéreo e apenas com legendas em portugues. Quem já tem blu-ray sabe que o DVD já era, mas assim não dá ! Ô Califórnia … quanto amadorismo, saiam do mercado !!!

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  15. Gostei bastante do filme. Não me parece de todo uma história sobrenatural, embora a narrativa tenha elementos sobrenaturais mas apenas a nivel descritivo. Ou seja, uma realidade é “pintada” com toques sobrenaturais mas que a meu ver são originados na loucura óbvia da personagem feminina, que desde o primeiro momento do filme se pressupõe ser louca (penso isto porque há um momento no filme em que ela se recorda do instante em que enquanto fazia amor com o marido e a criança se jogava pela janela, ela assistia a tudo conscientemente e sem nada fazer para impedir. Isto me leva a crer que o realizador pretendeu forçar no espectador a ideia da loucura na mulher). Com isto em mente, o filme torna-se uma jornada pela psique conturbada da mulher, contraposta à racionalidade do marido. Talvez seja uma atitude misógina ou manipuladora do realizador, mas em nada tira mérito à obra que pela sua crueza e coragem merece todo o respeito. Penso que a força e violência de certas cenas poderia bem ser amenizada, sem duvida, mas isso iria tirar o impacto que Trier quis causar. Se não víssemos toda a crueza dessas cenas, talvez nem as lembrássemos ou não déssemos a devida importância à loucura da mulher — a meu ver, o verdadeiro tema do filme. A violência está lá para realçar o tema do filme. Só isso. Da mesma forma que uma comédia tenta a todo custo tornar mais hilárias e absurdas certas situações, ou que num filme de acção o barulho das metralhadoras seja mais ensurdecedor. Aqui é a violência de certas cenas que confere o impacto necessário para sublinhar a loucura. Sobre o final, é uma alegoria simples. Tal como certas visões se sucedem durante o filme sem aparente propósito, tambem este final visionário e alucinatório fica como uma ilustração (belissima…) do tema da natureza feminina, distorcida pelo veio da loucura que Trier sublinha no filme. Não será uma obra prima, mas é sem duvida o filme mais forte do realizador. Tanto pelo tema como pela construção do filme, pela interpretação extrema de Charlotte Gainsbourg, pelo ambiente de pesadelo que trespassa a narrativa, por tudo isto é um excelente filme que deve ser visto com um espirito aberto e um estômago forte.

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  16. Assisti ontem. Me lembrou em algumas passagens um filme de Bergman chamado ‘A Hora do Lobo’. A abordagem é bem parecida. Nele, um casal sofre pelos tormentos que a loucura pode trazer. O marido, tem visões de supostos demônios e no final, sua esposa, interpretada magistralmente por Liv Ullmann, pela convivência, começa a vê-los. Loucura. Trier trabalhou este conceito num filme com simbolismos, que assim como os de Bergman, é o espelho do inconciente dos seus personagens. Figuras que fazem sentido para nós, mas que são entendidas somente no ‘universo’ de seus personagens. Anticristo, aborda de forma categórica a loucura e a culpa como simbolismos. Isso diferente dos filmes de Bergman nos é velado, pois são particularidades de seu diretor. Imagens compartilhadas como arte, atuações melancólicas – destacando Charlotte Gainsbourg, ótima fotografia e belas cenas em câmera lenta. O problema não e externo, mas é no interior onde ‘o caos reina’. Um dos melhores de Lars Von Trier.

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