Amantes

[rating:5]

Relações afetivas em geral podem ser, através de um processo de simplificação um tanto grosseiro, relacionadas em duas categorias gerais. Existem as paixões puramente emocionais, aquelas mais cegas e dolorosas. Essas ardem como fogo, paralisam, preenchem todos os espaços, parecem sufocar quem as sente; resistir a elas é quase impossível. E há as paixões racionais, mais frias e cerebrais, que se constroem aos poucos, de forma mais pensada, calculada. Esses dois amores expõem uma dicotomia central da condição humana: a oposição entre razão e emoção. “Amantes” (Two Lovers, EUA, 2008) trabalha essa dicotomia tão fundamental, e no entanto de abordagem tão rara no meio audiovisual. É a história de um homem dividido entre duas mulheres.

Leonard (Joaquin Phoenix) vive no subúrbio de Nova York e trabalha em um negócio familiar. Seus pais possuem uma pequena lavanderia, negócio que ele ainda não está emocionalmente pronto para assumir. Aliás, o melancólico Leonard não parece pronto a assumir nada, nem mesmo as rédeas da própria vida, desde que levou um tremendo pé na bunda, dois anos antes. E eis que de repente, na mesma semana, após meses de solidão e dor, duas garotas de perfis distintos entram na vida dele. A primeira é a filha de outra família judia do mesmo ramo, Sandra (Vinessa Shaw). A outra é uma nova vizinha, Michelle (Gwyneth Paltrow). Sem saber uma da outra, elas vão pôr a cabeça de Leonard em parafuso.

Michelle representa a emoção, a paixão cega e alucinada. É uma garota problemática, enredada em um relacionamento com um homem casado (Elias Koteas) que lhe faz mal tremendo, e que vê em Leonard um confidente em potencial. Sandra é o oposto. Morena, tímida e decidida, ela simpatiza com Leonard logo no primeiro encontro – um desconfortável jantar entre famílias – e não hesita em usar o telefone para deixar claro que ele lhe interessa em nível pessoal. As duas famílias, que já discutem uma possível fusão nos negócios, veriam com simpatia a possibilidade de um namoro. Mas ninguém força a barra. Não existem vilões calculistas em “Amantes”. Apenas pessoas comuns, lidando com problemas comuns e situações dramáticas universais.

Em um melodrama, Sandra ou Michelle ou os pais (ou todos) seriam tratados como canalhas, estúpidos ou interesseiros. Sandra poderia ser a menina mimada e possessiva que quer o menino problemático do bairro só para si. Michelle poderia ser a loira gelada e maquiavélica a fim de enganar um trouxa enquanto continua a sair com o homem casado. Os pais poderiam ser velhos interesseiros lutando por um casamento entre filhos para manter as aparências financeiras. Mas “Amantes” não procura o melodrama. Ao invés disso, temos apenas seres humanos normais, gente confusa como nós, um grupo de pessoas envolvido em um intrincado jogo amoroso do qual somente Leonard tem consciência.

Jovem cinéfilo apaixonado pelo cinema da Itália dos anos 1960 (“Rocco e Seus Irmãos” é obra de cabeceira), James Gray assina aqui apenas o quarto filme em uma carreira que já tem 14 anos. É fácil entender porque ele filma tão pouco: porque os grandes estúdios não têm nenhum interesse em histórias humanas sobre gente confusa, narradas com um senso de delicadeza que somente grandes observadores da alma humana conseguem captar. É também por isso que Gray consegue atrair bons atores para projetos autorais sem grandes expectativas de bilheteria – Phoenix, por exemplo, trabalha com ele pela terceira vez.

Conduzindo a narrativa de forma clássica, sem qualquer malabarismo estilístico que chame a atenção para si mesmo, James Gray se mostra digno sucessor de grandes narradores invisíveis, à moda de Howard Hawks ou John Ford. Seu filme nem tem cara de filme. A história parece se desdobrar sozinha, naturalmente, sem uma única nota fora do lugar. E se o esqueleto dramático é universal e tão velho quanto o Big Bang, os personagens são imbatíveis: todos eles, do protagonista (Leonard está em todas as cenas, e o filme preserva seu ponto de vista inteiramente) aos menores coadjuvantes, são interessantes. Preservam um senso de mistério, um pequeno toque obscuro, que lhes dá vida autêntica fora do roteiro. Podemos imaginar todas essas pessoas vivendo para além do filme. Eles existem de verdade. Criações tão palpáveis são pequenas vitórias dos verdadeiros artistas.

Observadores mais atentos irão notar que a estética, claro, existe e está lá, nas imagens, nos sons, nos silêncios, mas sempre servindo à história e jamais se sobressaindo a ela. A paleta de cores escolhida – verdes e azuis escuros, tonalidades cinzentas – e a luz amorfa, cansada, parecem refletir a visão de mundo de Leonard naquele momento específico de sua vida. De quebra, James Gray filma sua vizinhança (todos os filmes dele são ambientados na mesma área judia de Nova York) com a honestidade e o conhecimento de uma locação real, sem o cheiro de naftalina de um estúdio. Também é preciso ressaltar a importância do tema “família” dentro da obra dele, algo já observado em filmes anteriores e, aqui, introduzido com sutileza no personagem da mãe, a única que percebe algo de diferente com o filho, e age como a mais lúcida das matriarcas.

Brindados com um roteiro tão sutil e inteligente, os atores deitam e rolam. Phoenix, que logo após as filmagens anunciou estar deixando a carreira, nunca parece menos do que perfeito. Rossellini, em papel curto, protagoniza talvez o momento mais emotivo do filme, uma curta troca de olhares silenciosos que diz mais do que todos os quinze finais de “O Senhor dos Anéis” juntos. E há, além disso, pelo menos um momento digno de inclusão em uma antologia dos grandes estudos de personagem: a luminosa visita de Leonard a uma boate em Manhattan, num curto episódio em que ele deixa antever uma faceta de sua personalidade que até então (e mesmo depois disso) permanece escondida sob uma densa camada de melancolia. Nesta cena brilhante, James Gray parece dizer que os melhores personagens do cinema não se resumem àqueles momentos em que os vemos na tela. Eles têm uma rica vida interior, e aquilo que podemos vislumbrar é apenas a ponta desse iceberg de experiências humanas fascinantes.

O DVD nacional carrega o selo PlayArte. O filme aparece com enquadramento correto (widescreen anamórfico) e áudio em seis canais (Dolby Digital 5.1).

– Amantes (Two Lovers, EUA, 2008)
Direção: James Gray
Elenco: Joaquin Phoenix, Gwyneth Paltrow, Vinessa Shaw, Isabella Rossellini
Duração: 110 minutos

21 comentários em “Amantes

  1. Já tinha lido umas coisas sobre esse filme que sem dúvida fizeram ele ser minha maior expectativa para os próximos dias. Suas estrelas e seu texto apenas confirmaram tudo. Pessoas normais? Narrativa clássica? Melancolia e silêncio? Pelo amor de Deus, Rodrigo, você sabe se esse filme vai estrear em cinema e quando??? É que já encontrei ele na net, mas queria muito ver numa telona… Se você souber, por favor, passe essa informação…
    (infelizmente minha correria com a pós está me impedindo de conhecer tua disciplina… vou acompanhar a bilbiografia que você deixar na xerox e deixar pra conhecer tua ‘didática’ em outra oportunidade…)

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  2. Poxa. Eu já tinha visto o trailer, achei bem interessante. Depois da crítica e dos textos no seu twitter fiquei bem curioso para assistir.

    Vou assistir 🙂

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  3. rodrigo, sobre a joaquin ter deixado a carreira de ator, até onde você sabe da história? esses boatos de que isso faz parte de uma grande “arte” dele, serão verdade?

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  4. Rodrigo, segui sua dica e vi ontem o filme, no UCI Multiplex. Muito bom ! A única informação que tinha me permitido acessar foi que se trata do mesmo diretor de “Os Donos da Noite”. O cara é dos bons ! E agora, lendo sua crítica, passei a gostar mais ainda. Aquela contribuição que o olhar do especialista traz para alargar nossa leitura.
    Gostei sobretudo de sua observação quanto à cena de Leonard na boate. De fato, isso é um diretor que sabe trabalhar as sutilezas e o emaranhado que é uma personalidade humana. Brilhante ! A construção do James Gray e sua observação (didática, como sempre). Parabéns !
    Grande abraço!

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  5. Rodrigo, amei o filme, ja ia assitir e depois de ler sua critica fui correndo.
    Na VEJA diz que Joaquim Phoenix vai abandonar as telas para ser musico de hip hop.
    Espero que ele sempre de um tempo e volte pra fazer mais filmes com o James Grey.

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  6. Vi o filme ontem e fiquei encantada. As sutilezas, as metáforas utilizadas, que apesar de serem batidas, foram colocadas de modo tão humano e real. A fotografia linda e a trilha sonora muito eficiente. Isso sem falar nas interpretações soberbas. Que delícia é ver Isabella Rossellini tão competente e sensível. E quanta emoção o Joaquin Phoenix nos passa só com um olhar.
    Um dos melhores que vi esse ano. Um filme que transpira verdade e humanidade.

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  7. Achei o filme excelente. Nada sobra e nada falta numa estória que poderia cair facilmente num melodrama deslavado. O elenco todo é formidável e, particularmente, as atuações de Phoenix e Isabella Rossellini são impagáveis. Torço para que Joaquin Phoenix deixe o rap de lado e continue brilhando na sétima arte.

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  8. Eu sou fa de Joaquin Phoenix e fui ver esse filme mais por ele. Fiquei entristecida com a confusão mental do protagonista, deu muita pena.
    Achei o filme mto bem feito e o que mais me chamou a atenção foi q tudo parecia tao natural.. vou ver mais filmes desse diretor.
    Ahhh! Fiquei o filme todo (exagero) esperando por cliches e eles não vieram.. o que foi ótimo =D

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  9. Rodrigo, acabei de ler uma outra crítica de “Amantes” e vi um comentário que me alerta para o longo caminho a percorrer rumo a uma fruição mais atenta dos filmes. Vc percebeu que, e aqui transcrevo uma parte da crítica, “em uma cena de lanchonete podemos escutar ao longe Amália Rodrigues cantando ‘Estranha Forma de Vida'” ? Fiquei passada ! Passou batido por mim !

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  10. Andrea, prestar atenção a todos os pequenos detalhes (o que você chama de “fruição atenta”) é literalmente impossível. Tente relaxar com isso. Os detalhes que forem narrativamente importantes você vai naturalmente perceber – pelo menos a maioria – se tiver oportunidade de mergulhar no filme sem distrações.

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  11. Também gostei muito desse filme. Uma história que pode acontecer com qualquer um. Os atores estão muito bem nos papéis. O destaque fica para o Phoenix, que me passou todas as características de uma pessoa bi-polar, com altos e baixos frequentes, se emocionando até as lágrimas e se lançando em uma relação “suicida” com outra pessoa, tão complicada quanto ele. Do lado de cá, o espectador vê logo que não poderá dar certo. Mas a carência do sujeito é tão grande que ele prefere “não enxergar” o precipício.

    Rodrigo, eu gosto muito de cinema e, como vou muito, passei a melhorar meu olhar para detalhes, expressão dos atores, trilha sonora, etc. Este filme me lembrou, em determinado momento, o do Match Point do Woody Allen, no quesito música (Ópera ?). A música vai num crescendo conforme a tensão do momento … Acho até que virou moda colocar trechos de Óperas em determinados filmes: Fatal, da Isabel Coixet, é outro exemplo.

    Parabéns por sua crítica tão esclarecedora ! Já vou repassar para minha lista de amigos cinéfilos.

    Abraço

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  12. muito bom, rodrigo.
    curioso que fiz uma sessão dupla aqui em casa com o italiano “A primeira noite de tranquilidade” e em seguida vi este “Amantes”. sem querer, acabei assistindo dois filmes com algumas semelhanças: um protagonista atormentado, senão deslocado; e as duas mulheres em sua vida, sendo uma delas uma garota melancólica e com segredos a guardar.
    o filme do Valerio Zurlini tem uma discussão espiritual que passa ao largo do filme do James Gray (são os novos tempos do cinema de muita religiosidade mas pouca transcendência?). Os finais de ambos os filmes, são diferentes só na superfície. — SPOILER — À princípio, a violência no final do filme italiano contrasta com o final “feliz” do filme americano. Na verdade, a melancolia e a tragédia pessoal estão nos finais. A morte física de um tem paralelo com a morte passional de outro.
    outra semelhança é o modo de narrar a história. como você bem descreveu, não há malabarismos estilísticos. até parece que os diretores não estão contando uma história interessante. Essa naturalidade linear dos dois filmes, essa ternura trágica, é diametralmente oposta à correria e à compulsão pela citação/paródia do cinema dos últimos anos.

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