Cárcere e a Rua, O

[rating:2.5]

“O Cárcere e a Rua” (Brasil, 2004) é um documentário em longa-metragem que se insere dentro de um dos temas preferidos dos cineastas brasileiros contemporâneos, trabalhem com ficção ou com a realidade: a vida dentro das prisões. A diferença, neste caso, é que o filme foi realizado por uma mulher, estreante no ofício, e de um ângulo diferente, já que Liliana Sulzbach opta por enfocar a difícil transição entre a liberdade das ruas e as duras condições de vida dentro do cárcere.

Depois de entrevistar mais de uma centena de presidiárias de Porto Alegre (RS), a diretora decidiu realizar o filme a partir das trajetórias de três delas. Para tanto, acompanhou o dia-a-dia do trio durante mais de dois anos, registrando tudo em câmeras digitais. Dessa forma, elaborou um retrato pungente do processo de adaptação do ser humano a condições de vida completamente diversas.

Em meio a depoimentos reveladores, que muitas vezes desnudam um quadro de confusão mental, a diretora conseguiu um fio narrativo bastante incomum. As três entrevistadas são pessoas muito diferentes entre si, mas compartilham de algo, que é a solidão e o medo de enfrentar uma vida desconhecida. É um processo curioso: não importa se as mulheres estão saindo ou entrando na cadeia, a reação é sempre a mesma – rejeição à nova condição.

Tome o caso de Daniela, 19 anos, acusada de matar o próprio filho. Nos primeiros dias de prisão, tem medo de sofrer violências, acha que não vai aguentar a vida na cadeia e cai em prantos. Em determinado momento, suas barreiras estão no chão, e ela chora copiosamente, um desespero de dar nó na garganta. Nove meses depois, sua mente já ergueu novas defesas. Agora, Daniela não se importa mais com o resultado do julgamento. Ela ocupa as tardes escrevendo cartas caprichadas para desconhecidos, e as enfeita com desenhos e mentiras deslavadas, que conta com um riso maroto no canto da boca.

Cláudia, 54 anos, está no lado oposto. Após 28 anos de prisão, ela está prestes a sair, mas não se sente apta a enfrentar as ruas. A equipe de filmagem acompanha seu primeiro passeio de ônibus, e colhe imagens arrasadoras: a mulher se perde várias vezes, fica constantemente impressionada pelas mudanças radicais na paisagem urbana, fala baixo e não olha as pessoas a quem pede orientação nos olhos. Também não consegue reatar seu relacionamento com o filho, a quem não vê desde criança. Cláudia é taciturna e tem consciência de jamais vai se reintegrar de fato à sociedade, mas viverá à margem dela; aceita isso com resignação.

A terceira entrevistada é Betânia. Ela tem 28 anos e também está perto de sair da prisão, após pouco menos de três anos encarando o cárcere. A prisão ainda não lhe deixou marcas profundas, como em Cláudia, mas ela está no caminho para isso. É interessante perceber como ela lida com a sexualidade, tornando-se lésbica na prisão – e jurando jamais sair de novo com um homem – e arrumando sucessivos namorados, somente alguns dias depois de ganhar a liberdade.

Se é pobre do ponto de vista técnico – as imagens, captadas com câmeras ruins não têm profundidade, o tratamentom de cores é horrível e o som às vezes fica inaudível, o que obriga a diretora a colocar legendas –, “O Cárcere e a Rua” compensa com muitos momentos emocionantes. “O Cárcere e a Rua” não é um documentário jornalístico e nem um show de entretenimento no estilo de Michael Moore. Faz denúncia social sóbria, e observa a alma de pessoas humildes com olhar compreensivo, mas sem pena ou, pior, vontade de denuncismo.

“O Cárcere e a Rua” é um retrato do sistema penitenciário brasileiro, e mais do que isso. O filme questiona os resultados do encarceramento como forma de punir desvios sociais – será que um período afastado do convívio recupera uma mente criminosa? – mas também documenta a extraordinária capacidade que a mente humana tem de se adaptar, mesmo sob as mais adversas circunstâncias. Uma estréia promissora.

O DVD da Europa Filmes é OK. O enquadramento correto (wide letterboxed) foi preservado, e há trilha de áudio em cinco canais (Dolby Digital 5.1). Um making of e um spot de TV constam como extras.

– O Cárcere e a Rua (Brasil, 2004)
Direção: Liliana Sulzbach
Documentário
Duração: 80 minutos

5 comentários em “Cárcere e a Rua, O

  1. Perdi uma pequena parte do filme.

    Belo e triste ao mesmo tempo.

    Muito bem feito,não vi os defeitos apontados aqui.

    Vi com olhos humanos…não técnicos.

    Faltou saber o que fez Claúdia para ficar presa

    por tanto tempo.

    Dos 54 anos de vida,28 ficou encarcerada.

    Obrigada.

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  2. Acredito, que Cláudia tenha matado alguém…
    Foram anos de prisão, embora passar ser uma pessoa maravilhosa.
    Ela protejeu até onde deu Daniela, que supostamente matou o filho, mas como
    ela pensava “Cláudia”… Dani iria eloquecer.
    Um momento ela disse: que na cadeia nada aprendeu, depois no outro dia disse: aprendi muito e muito!

    Bjs,
    Ru Aisó

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  3. A Claudia matou uma criança, assou e serviu aos pais. Ao contrário do disseram no filme, ela não era respeitada pelas outras presas, e sim rejeitada, tanto que ficava separada.

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  4. Liliana,
    Fizestes, junto com a equipe, um filme maravilhoso!
    Conseguistes dar uma dimensão dos fluxos identitários humanos…sob uma ótica das “grades e das liberdades”. Muitos já tentaram e não conseguiram essa façanha!
    Belo e contagiante esses “relatos de vida” nos colocam dentro da história; e, sob certo aspecto, desnudam nossa impotência e indiferença coletivas; não unicamente relacionado aos que nós consideramos lixo humano, mas àqueles que estão aparentemente livres, ao nosso lado…
    Fiquei triste com o suicídio da Cláudia…
    Deixo meus parabéns pela obra.
    Assistam e não se deixem isolar pelas grades cotidianas.
    Glade

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  5. CLÁUDIA fugiu de casa aos 14 anos para morar em POA, passou fome e roubou, esteve presa tres vezes, na 2ª vez por 4 anos e 6 meses, quando o filho tinha 2 anos. Na ultima foi presa por latrocinio(art. 157, § 3º, CP -Roubo seguido de morte), dos 54 anos que tinha 28 ficou presa. Fez 17 anos de regime fechado e tinha ao sair pro semi aberto 9 anos a cumprir.

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