Boa Noite e Boa Sorte

[rating:4]

O ator George Clooney, presença freqüente nas listas de homens mais bonitos do mundo, vem demonstrando ser bem mais do que isso. O mais engajado dos astros do primeiro time de Hollywood mantém uma produtora com o amigo e cineasta Steven Soderbergh, e a empresa tem financiado projetos de pequeno porte que espetam fundo na consciência moral do norte-americano médio. O segundo longa-metragem de Clooney como diretor, “Boa Noite e Boa Sorte” (Good Night, and Good Luck, EUA, 2005), é um ótimo exemplo disso.

O filme utiliza um clássico episódio de censura interna vivida pelos EUA – a “caça às bruxas” promovida pelo senador republicano Joseph McCarthy, na década de 1950 – para fazer uma afirmação contundente sobre a dualidade entre direitos individuais X segurança nacional. Concebido e filmado em uma época dominada por seguidos exemplos de invasão de privacidade patrocinados pelo governo (republicano) de George W. Bush, o filme defende claramente um ponto de vista liberal: a justificativa da segurança nacional não deve, jamais, servir de pretexto para a limitação dos direitos civis dos indivíduos.

O tema tem sido objeto de insistente polêmica nos jornais e no meio universitário dos EUA – e, por conseqüência, do mundo – depois dos atentados de 11 de setembro de 2001. Após a ação terrorista em Nova York, o Governo Bush passou a defender limitações aos direitos individuais, nos casos em que visse ameaçada a segurança nacional. Muita gente comprou a idéia sem questionamentos. “Boa Noite e Boa Sorte” é a contribuição velada – pois não menciona, em nenhum momento, Bush ou o atentado às Torres Gêmeas – de Clooney ao debate. Ou seja, é o típico caso em que um cineasta utiliza um episódio verídico do passado para falar do presente.

Nesse sentido, “Boa Noite e Boa Sorte” é menos uma obra cinematográfica e mais uma peça político-ideológica. O filma trata de lembrar os norte-americanos de como o senador Joseph McCarthy, utilizando os mesmíssimos argumentos da Era Bush, perseguiu, prejudicou e destruiu a vida de muita gente honesta. Por ser um tema muito norte-americano, “Boa Noite e Boa Sorte” provoca uma curiosidade limitada no resto do mundo, Brasil incluído. É um filme que trata de um assunto relevante, sem dúvida, mas que tende a provocar menos atenção por evocar um universo muito diferente do cotidiano brasileiro.

Produzido a partir de um elegante visual preto-e-branco e utilizando uma narrativa direta e sem enfeites, “Boa Noite e Boa Sorte” conta como o âncora Edward Murrow (David Strathairn) e sua equipe jornalística utilizaram o programa “See It Now”, na prestigiosa rede de televisão CBS, para questionar e combater o senador McCarthy. O longa ilustra também como o contra-ataque do político foi traiçoeiro, atingindo as vidas pessoais de integrantes do time jornalístico e pressionando os patrocinadores do programa.

Clooney filma tudo acentuando a atmosfera de tensão e paranóia, tanto no preto-e-branco sombrio da parte visual quanto nas atuações nervosas do elenco. “Boa Noite e Boa Sorte” é repleto de cigarros, suor, dentes trincados e olhares oblíquos, ambientes esfumaçados e a pressão constante do relógio. Um dos maiores méritos está na fotografia de Robert Elswit. As imagens esfumaçadas contribuem para reforçar o clima de tensão, e as abundantes tomadas fechadas nos rostos dos atores alimentam ainda mais a sensação de que a qualquer momento aqueles homens podem ser atingidos por um contragolpe certeiro.

Além disso, o enfoque do filme é muito objetivo, evitando mostrar a vida pessoal dos personagens e focando 100% do tempo no trabalho deles. O protagonista Ed Murrow, por exemplo, jamais é mostrado fora do ambiente do trabalho; isso acontece apenas com um dos repórteres da equipe (Robert Downey Jr), e apenas porque a vida privada do rapaz invade a esfera do trabalho, já que ele é casado com uma colega de redação, algo que é proibido na televisão.

Muito elogiado pela crítica norte-americana, “Boa Noite e Boa Sorte” conta ainda com uma belíssima trilha sonora, composta quase exclusivamente por clássicos do jazz norte-americano, além de um trabalho uniformemente eficiente do elenco. O semblante fechado de David Strathairn combina perfeitamente com a taciturna personalidade de Murrow, e o próprio Clooney se esconde atrás de um par de óculos para compor o braço direito do jornalista, o produtor Fred Friendly. Se não é uma obra-prima, “Boa Noite e Boa Sorte” é drama político dos bons.

O DVD para locação é um lançamento da Paris Filmes. O disco é simples, não tem material extra (nada de documentários) e, heresia, mutila na lateral o enquadramento original (4:3, ou tela cheia). O som é Dolby Digital 5.1

– Boa Noite e Boa Sorte (Good Night and Good Luck, EUA, 2005)
Direção: George Clooney
Elenco: David Strathairn, George Clooney, Robert Downey Jr, Jeff Daniels
Duração: 93 minutos

4 comentários em “Boa Noite e Boa Sorte

  1. É maravilhoso este filme. Não concordo com a opinião de quem escreveu que este “se não é uma obra prima, ‘Boa Noite Boa Sorte’ é drama político dos bons”. Não concordo pois já parto do princípio de que este filme já entrou para a história do cinema internacionalmente. O filme é belíssimo na forma e no conteúdo. No cuidado de ambientalizar remetendo-nos à década de 50 sem cheiro de naftalina. É verdade que é um filme difícil. Principalmente para quem não conhece bem a história dos Estados Unidos nesse período. Há muitos elementos sutís no filme: diálogos, suspenses cênicos, olhares, um jeito de tragar o cigarro em determinados momentos… Tudo me convidou para abrigar esta vastidão do contexto vivido no filme. E o cheque mate: a música. O diretor do filme foi muito perspicaz em não dissociar a música de todo o conjunto do filme. Aí certifico que o cinema, pra quem compreende mesmo sua linguagem, é a sétima arte. Assistí ao filme várias vezes só para ouvir as canções.
    Recomendo a todos os que se interessam por arte, política, comunicação, história e filosofia… Mas o filme é mais do que essas palavras dizem.
    Abraço.
    Ródinei Páscoa Amélio

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  2. Há uma questão paralela diante da história especificadamente dos norte-americanos abordada nesse filme que é universal: os mercados. Por que achas, Rodrigo, que programas educacionais, hoje, no Brasil de hoje, 2011, são veiculados, mesmo que de grande qualidade, às 6, 7, 8 da manhã de sábado, domingo, ou de madrugada, enquanto todos estão dormindo ou de ressaca? Por que, por exemplo, esse mesmo filme não passa em uma Tela Quente? Nenhuma corporação patrocina uma programação que propõe um pensamento mais complexo sobre as coisas e a vida e os outros, e os quais exigem mais conhecimento, elevando a qualidade intelectual de um povo. Tudo tem de ficar nivelado por baixo, em função dos patrocínio, dos mercados. Sem entrar em mais detalhes sobre, principalmente de cunho científico, esse é um dos elementos universais desse filme, e que não diz necessariamente somente aos norte-americanos. Achei o filme surpreendente.

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