Elefante

[rating:4]

“Elefante” (Elephant, EUA, 2003) é um filme muito estranho. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2003, o longa-metragem põe o cineasta Gus Van Sant dentro do ambiente em que ele mais se sente à vontade: o universo da juventude norte-americana. Além disso, é um filme um tanto afetado, que exibe muitos malabarismos técnicos bem feitos. Pode-se classificar o filme como perturbador ou instigante, algo que ele, de fato, é. Mas “Elefante” também é um filme lento e, às vezes, chato.

O longa-metragem aborda uma recente obsessão norte-americano, que é a violência entre os jovens. Gus Van Sant usa uma narrativa ficcional para reinterpretar livremente um dos episódios mais marcantes de violência dentro dos EUA: o massacre da escola Columbine, em 1999, quando dois alunos abriram fogo, usando armas pesadas, contra professores e alunos, matando quase duas dezenas deles. O filme de Van Sant, aparentemente, reconstitui os eventos imediatamente anteriores de um punhado de jovens que estudavam na escola, incluindo os assassinos.

Uso a palavra “aparentemente” porque, no filme, a escola tem outro nome, e todos os estudantes também. Van Sant, portanto, utilizou o fato apenas como ponto de partida para uma bem elaborada teia de movimentos. O diretor utilizou alguns artifícios típicos do neo-realismo italiano (que foram, inclusive, usados de forma idêntica no nosso “Cidade de Deus), como a narração de um mesmo evento de diversos pontos de vistas diferentes, algo também visto no final de “Jackie Brown”, de Quentin Tarantino.

Os atores de Van Sant também são todos não-profissionais (algo que Vittorio De Sica já fazia em 1940 e Fernando Meirelles reciclou em 2002) e utilizam os nomes verdadeiros durante o longa-metragem – ou seja, interpretam a eles mesmos, como em “A Bruxa de Blair”. Como se pode ver, nada é inédito na tática do cineasta. É verdade que ele utiliza essa combinação de técnicas com extrema competência, tecendo um filme de logística aparentemente simples, mas na verdade extremamente complicada.

Na maior parte do tempo, as câmeras seguem os personagens, que são apresentados simplesmente pelo primeiro nome. Rapidamente, a platéia percebe que o recorte de tempo escolhido pelo cineasta está nos minutos que antecederam o início do massacre. Assim, o filme se dedica a mostrar, em longas tomadas sem cortes e com câmera na mão, a trajetória de alguns participantes da tragédia dentro da escola. Eles parecem ter sido escolhidos aleatoriamente pelo diretor, que procura se afastar o máximo possível de qualquer tipo de julgamento moral.

Se a narrativa prima pela engenhosidade, a construção visual retoma a algumas imagens típicas do cinema de Van Sant. Há inúmeras tomadas de pessoas caminhando, bem como lindas panorâmicas de adolescentes contra um céu distante e até certo ponto opressor, como que evocando um Deus que assiste a tudo sem participar ou julgar, assim como a câmera de Van Sant. Tudo isso já estava em “Drugstore Cowboy” e “Garotos de Programa”, os dois melhores filmes do diretor.

Também é normal, na obra do cineasta, o enfoque homoerótico de algumas situações (aqui, numa reunião de ativistas adolescentes e também num curioso beijo trocado pelos dois assassinos, em cena que promete render polêmica). Portanto, “Elefante” aspira à condição de filme autoral, e acerta o alvo. A opção de desglamourizar o ato de violência, despindo-o de significados, parece funcionar a contento. Isso é, de longe, o maior acerto de Gus Van Sant.

Por outro lado, sente-se a falta de algum tipo de enfoque humanista do longa-metragem. Os 80 minutos de projeção parecem virar 150, diante de tantos e tão prolongados silêncios, emoldurados por imagens cuidadosamente elaboradas. Há técnica demais no filme, e falta emoção. De certa forma, parece até justificável que um trabalho assim tenha vencido o excepcional “Sobre Meninos e Lobos”, em Cannes.

O longa de Clint Eastwood versa sobre o mesmo tema da incompreensão sobre os efeitos da violência, mas de uma perspectiva inteiramente diferente, mais épica e trágica. “Elefante” é um filme sobre cotidiano, que tem ritmo mais europeu (lembra um Antonioni para adolescentes) e evoca, de alguma forma, os ensaios de André Bazin. O crítico francês defendia um cinema honesto e o mais próximo possível da realidade, sem interferência do realizador.

Aparentemente, o distanciamento auto-imposto de Van Sant encontra esse ideal. Talvez seja só aparência, uma vez que o cineasta norte-americano ainda estetiza excessivamente a narrativa, apesar de retirar do ato violento o seu fardo moral. Mas deixo esse julgamento a cargo de cada espectador. A mim, “Elefante” parece um filme tecnicamente meticuloso e travestido de desleixado. O que não deixa de ser, também, uma escolha moral.

O DVD da Warner contém apenas o filme, sem extras, mas com imagem widescreen e som Dolby Digital 5.1.

– Elefante (Elephant, EUA, 2003)
Direção: Gus Van Sant
Elenco: Alex Frost, Eric Deulen, John Robinson, Elias McConnell
Duração: 80 minutos

2 comentários em “Elefante

  1. Filme que merece ser assistido. Os detalhes são muito bons. O filme mostra vidas repentinamente interrompidas, enquanto se desenrolavam seus dramas particulares: a estagiária da biblioteca e sua dificuldade de aceitação, por exemplo. Claro que o distanciamento do cineasta é uma impossibilidade lógica. Ele precisa tomar decisões estéticas, e mesmo a decisão de se distanciar é dele, de modo que ele não se distanciou de fato, mas optou por uma estética que dê a impressão de distanciamento. O não-julgamento dos fatos, que são simplesmente expostos, também é uma escolha criteriosa, e feita com base em julgamentos do diretor.

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