Cidade de Deus

[rating:4.5]

A abertura diz tudo. Com edição veloz , o espectador vê uma galinha observar os preparativos de uma festa em que o prato principal é ela mesma. A ave é a própria imagem do desespero. A seqüência da abertura do longa “Cidade de Deus” (idem, Brasil, 2002) registra as muitas qualidades do filme nacional mais elogiado do ano: narrativa dinâmica, montagem ágil, profusão de técnicas afinadas com o cinema independente americano e, sobretudo, uma atuação maravilhosa do elenco desconhecido.

O mérito é do diretor Fernando Meirelles, um paulista egresso da publicidade – não é todo mundo que consegue uma performance tão convincente de uma galinha. Mas o trunfo de Meirelles vai muito mais longe desse truque de edição. “Cidade de Deus” é um projeto que tomou cinco anos da vida do cineasta. Fernando mudou-se para o Rio de Janeiro e dirigiu dois filmes como preparação. Durante as filmagens do trabalho, teve que convencer a produtora O2, da qual é sócio, a investir R$ 8 milhões no longa.

O resultado é um filme empolgante. Como produto de exportação nacional, “Cidade de Deus” merece todo destaque: utiliza um conjunto de técnicas cinematográficas sofisticadas, mixagem de som espetacular, narrativa fragmentada com agilidade e fluidez, conteúdo social contundente, tudo mixado num filme de roteiro inteligente, que amarra várias linhas narrativas com absoluta firmeza. Melhor: a película é conduzida com mão de veterano, surpreendente para um cineasta que tem apenas comerciais e um único longa (“Domésticas”) no currículo.

Entre os inúmeros méritos de “Cidade de Deus”, um se descata: o elenco. Pouca gente botaria fé num grupo de atores amadores, egresso das favelas cariocas, mas Meirelles fez isso. A decisão de usar atores não-profissionais, que remete ao movimento neorealista italiano (Roberto Rossellini fazia isso em 1945), é o maior trunfo do filme. Os atores emprestam ao filme uma credibilidade que nenhum outro filme (nacional ou não) ousou atingir, nos últimos tempos. Talvez porque nós, espectadores, conseguimos sempre imaginar que eles, os atores, não estão exatamente interpretando, mas reproduzindo situações que já viveram na vida real.

O grupo é homogêneo, mas é impossível não descatar a atuação de Leandro Firmino da Hora e Phellipe Haagensen. O primeiro interpreta com firmeza o truculento Zé Pequeno, enquanto o segundo empresta leveza ao malandro Bené, parceiro mais dócil do colega. Juntos, os dois atravessam as três décadas que cobrem o surgimento e a evolução do conjunto habitacional que dá nome ao filme, na periferia da Cidade Maravilhosa. Esta é a narrativa de Cidade de Deus: um constante cruzamento de crônicas e personagens, feito de uma forma que permite ao espectador compreender a escalada da violência e o avanço do tráfico de drogas nos subúrbios cariocas.

O trabalho de adaptação do livro, traduzido num roteiro reescrito doze vezes por Bráulio Mantovani, é excepcional. Os 250 personagens da obra se transformam numa dúzia de moradores da favela, cuja trajetória entre as décadas de 1960 e 1980 é vista sob a ótica do aspirante a fotógrafo Buscapé (Alexandre Rodrigues). Ele é o narrador do filme, o sujeito cuja presença – ou voz – alinhava as diversas crônicas que compõem “Cidade de Deus”. Esse grupo de pequenas histórias é dividida pelo cineasta em três blocos, divididos esteticamente pela fotografia (em tons amarelos na década de 1960, azuis na década seguinte e de cores quentes nos anos 1980).

O único senão que se pode fazer ao longa é o apelo por uma certa glamourização da violência, muitas vezes recebida com risadas pela platéia. Ao optar por essa espetacularização do cotidiano da favela (ou seja, pela transformação deuma realidade sórdida em espetáculo de consumo para a classe média), Fernando Meirelles está, em parte, jogando o jogo do mercado; está exibindo a favela numa janela fictícia, transformando os favelados em animais num zoológico humano para burgueses e gringos verem. Por outro lado, “Cidade de Deus” não perde de vista o tom de denúncia social. As duas características vêem juntas, amarradas num mesmo pacote.

O filme estabelece, também, um diálogo íntimo com o novo cinema independente dos EUA, através de técnicas pinçadas da publicidade mais moderna e de filmes como “Matrix” (o efeito bullet time, em cenas de flashback), “Jackie Brown” (a narração de uma mesma cena sob o ponto de vista de três personagens distintos) e “Clube da Luta” (troca de perspectiva geométrica da câmera, em cenas como a do estupro cometido por Zé Pequeno). A embalagem tecida pelo filme amortece um pouco o impacto brutal de muitas seqüências, através da carga de humor do roteiro. Há, contudo, uma cena inesquecível, capaz de calar fundo a platéia; é o momento em que Zé Pequeno encurrala uma criança de cinco anos que rouba nas imediações da favela e pede que ele escolha se prefere levar um tiro na mão ou no pé. O momento é emblemático e impressionante.

O maior empréstimo técnico, contudo, vem de “Traffic”. Trata-se do uso de filtros de cor e movimentos distintos de câmera para delinear cada época da história: amarelo/câmera fixa para as ruas de barro da favela nos anos 60, azul/câmera móvel para o asfalto dos anos 70, cores fortes/câmera manual para a explosão da cocaína nos anos 80. A narração em off também quebra o ritmo: evita gírias, desacelera os deliciosos diálogos (muitos dos quais saíram de improvisos), adota slogans quase publicitários. Estes detalhes confirmam o frescor de uma obra que reafirma o Brasil como pólo de importância central dentro da produção de cinema na América Latina.

O DVD de “Cidade de Deus” possui o filme em um disco e um longo documentário (pouco mais de uma hora) no outro. O programa narra todo o processo de treinamento dos atores não-profissionais que participam do longa, uma etapa regida pela co-diretora Kátia Lund. Há uma galeria de posteres e outros documentários menores, que emiúçam os bastidores do longa.

– Cidade de Deus (Brasil, 2002)
Direção: Fernando Meirelles e Kátia Lund
Elenco: Leandro Firmino da Hora, Alexandre Rodrigues, Phellipe Haagensen, Jonathan Haagensen
Duração: 130 minutos

2 comentários em “Cidade de Deus

  1. Melhor filme brasileiro que já vi! F. Meirelles é fenomenal, tem um ritmo que poucos cineastas no mundo possuem, agressivo, mas com qualidade impecável na direção de personagens! E a equipe técnica desse filme (edição/fotografia/montagem) tem uma qualidade inédita no cinema nacional!

    Pena que o sucesso do filme fez do nosso cinema uma espécie de novela da favela… muito forte para o horário nobre, mas ótima para ver no escuro, quando ninguem vê a cara de ninguem…

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  2. JP, concordo com muito do que você falou, mas sinto certa falta de interesse do pessoal mais jovem em conhecer clássicos do passado. Só para citar um exemplo correlato, “Pixote” é um filme que já fazia quase tudo o que o Meirelles fez, só que 20 anos antes. E teve uma repercussão internacional danada também.

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