Prenda-me Se For Capaz

[rating:3.5]

Aparentemente, fazia muito tempo que Steven Spielberg não dava uma de Steven Spielberg. Na década de 1990, o cineasta mais poderoso do planeta promoveu um ligeiro desvio no olhar cinematográfico que produzia, mergulhando em projetos mais ambiciosos, como “A Lista de Schindler” e “O Resgate do Soldado Ryan”. Conseguiu muitos prêmios e solidificou uma posição de cineasta autoral, algo a que aspirou durante anos e nunca – especialmente dentro dos EUA – conseguira estabelecer.

Quando analisado como um todo indivisível, porém, o cinema de Spielberg se mostra muito mais coerente do que parece. “Prenda-me Se For Capaz” (Catch Me If You Can, EUA, 2003) comprova isso mais uma vez. O longa é, para muitos, um retorno às aventuras despretensiosas de antigamente. Mas o filme parece ser muito mais do que mera diversão. Nele, Spielberg consegue mostrar de forma clara que se mantém fiel ao projeto de cinema que desenhou, há trinta anos.

Em termos de temática, a carreira de Spielberg sempre foi rigorosa e coerente. Desde “Tubarão”, de 1975, o cineasta já punha a desagregação do núcleo familiar em discussão. O divórcio (quase sempre visto do ponto de vista do lado mais frágil, que nem sempre é a criança – vide “Minority Report”) sempre esteve presente, explícita ou implicitamente, nos filmes que construiu. Nesse sentido, tanto as películas da primeira fase, aparentemente mais bobas (“Contatos Imediatos do Terceiro Grau”, “E.T. – O Extraterrestre”) quanto os últimos filmes, mais profundos (“A.I. – Inteligência Artificial”, “Minority Report – A Nova Lei”), mantiveram a mesma temática.

Ou seja, sob uma superfície em que parecia se tornar mais sério, Spielberg continuava a investigar uma das características mais fundamentais da geração a que pertence. Fez isso sempre de modo refinado, quase mesmo disfarçado – muita gente até hoje não percebeu esse elo de ligação presente em toda a obra dele. Talvez esse olhar de incredulidade diante da decadência da família norte-americana seja o verdadeiro responsável pela fama de “Midas de Hollywood” que construiu, já que a noção de família parece ser extremamente importante para a classe média dos EUA, que compõe a maior parte do público que vê seus filmes. De qualquer modo, Spielberg logrou sucesso na construção de uma obra autoral, coerente e dinâmica, algo que muitos cineastas sérios e talentosos jamais sonharam em atingir.

Toda essa conversa sobre a temática serve para explicar, também, porque Spielberg reconstruiu de forma meio radical a trajetória do falsário Frank Abagnale Jr. (Leonardo DiCaprio). No filme, Frank é o filho de um casamento fracassado, que se desintegra no meio da adolescência. Utilizando a lábia e a boa aparência, em meados dos anos 1960, o rapaz se fez passar por piloto de avião, médico e promotor de justiça. Durante três anos, deu sucessivos desfalques em bancos, roubando mais de US$ 3 milhões e viajando por todo o mundo de graça, quase sempre acompanhado de belas garotas. Fez tudo isso, pasme, com o FBI no encalço, personificado no filme pelo agente Carl Hanratty (Tom Hanks). Quem leu a biografia do sujeito sabe que ele não era apenas um garoto traumatizado pela separação dos pais, mas sobretudo um mentiroso compulsivo que adorava luxo e mulheres.

Para simplificar a trama e reforçar a visão do rapaz solitário que vivia num mundo de fantasia, Spielberg criou um filme sem antagonistas. Ao transformar Abagnale numa vítima das circunstâncias (o divórcio, como sempre, é o verdadeiro vilão), cuja relação com o pai é dolorosamente interrompida, o diretor coloca a platéia ao lado do protagonista. Por outro lado, dá um rosto aos perseguidores do FBI através de uma manobra muito esperta do roteiro. O policial que segue Frank, que não existiu na vida real, é um homem divorciado e, como Abagnale, sofre com isso. Dessa forma, Spielberg estabelece um elo entre os dois, transformando o policial em uma figura paterna. Muito engenhoso, mas falso. E aí?

Tudo bem, a distorção dos fatos reais é um pecado que a temática mais ampla da obra de Spielberg, como vimos antes, explica. Concordando ou não com isso, o fato é que o cineasta oferece um exercício de estilo de qualidade impecável. A fotografia de tons sóbrios e luminosos, por exemplo, foge dos clichês que mostram a década de 1960 como uma explosão caleidoscópica de cores. Combinada com a trilha sonora elegante e jazzística do craque John Williams (aqui, após algumas derrapadas, de volta aos melhores momentos), ela produz uma aventura irreverente e charmosa, cenário ideal para Leonardo DiCaprio mostrar que é muito mais do que um belo sorriso. Como bônus, uma abertura espetacular, que resume os melhores momentos do filme em uma animação bem ao estilo da Pantera Cor-de-rosa (e observe como o tema lembra, intencionalmente, a melodia inesquecível que Henry Mancini fez para os saudosos filmes de Blake Edwards).

Como se isso não fosse suficiente, o espectador ainda ganha demonstrações abundantes da refinada direção de Spielberg, que encontra soluções criativas e sempre visuais para comunicar as mais diversas situações. A cena em que Abagnale escapa do cerco do FBI, viajando cercado de aeromoças, é divertida e tecnicamente perfeita – e termina com um dos planos mais virtuosos de 2003, numa tomada simultânea que envolve Tom Hanks, duas dezenas de figurantes e um avião em pleno vôo. Note, nela, como Spielberg dá um sentido radical ao conceito de “diretor”, literalmente conduzindo o olhar do espectador para o acontecimento que deseja, de um ponto de vista sempre muito próximo. Ele faz uso desse talento com uma destreza técnica que só encontra paralelo em Hitchcock. Há quem não goste desse estilo, mas é preciso reconhecer o talento excepcional de um diretor que não erra quase nunca.

O DVD para locação do filme é simples e traz apenas o longa, sem qualquer aditivo. Já o disco para venda avulsa vem acrescido de um documentário de 82 minutos, que mapeia os bastidores do projeto de modo completo. Ele está dividido em seis partes temáticas (as filmagens, os atores, a trilha sonora, o verdadeiro Frank Abagnale Jr., a visão do FBI e um encerramento) que podem ser vistas separadamente ou num único conjunto. A cereja do bolo é uma trilha de áudio em DTS, excepcional. Show de bola.

– Prenda-me Se For Capaz (Catch Me If You Can, EUA, 2003)
Direção: Steven Spielberg
Elenco: Leonardo Di Caprio, Tom Hanks, Christopher Walken, Martin Sheen
Duração: 141 minutos

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